• Uma escola disruptiva é uma necessidade contemporânea para quem será adulto em 2040

    485 Jornal A Bigorna 30/06/2024 09:30:00

    Fui aluno dedicado e exemplar no ensino fundamental e médio. Era o que se chamava de “nerd”. Não era bom em exatas, mas tentava. Meu campo de destaque eram as humanas. Onde eu era bom? Era brilhante no comportamento, na assiduidade, na disciplina, nas roupas impecáveis e até nos cabelos perfeitamente ordenados.

    Ouvia na escola e em casa: somente bons alunos e obedientes seriam vitoriosos. Minha avó advertia, meus pais instruíam, as freiras do colégio São José exaltavam... Todos sabiam durante os anos do regime militar: o futuro pertenceria aos disciplinados!

    De alguma forma, há meio século, existia um alinhamento entre ideal educativo médio, sociedade, famílias e carreiras. Quando me tornei professor universitário aos 23 anos, quando ingressei na pós-graduação da USP ou quando fui aprovado no concurso para professor de História da América Colonial na Unicamp, meus mestres e parentes fizeram coro uníssono: “Ele sempre foi um bom aluno!”. Havia a coerência entre o sucesso e o respeito à hierarquia. Eu tinha vencido pelo sacrifício, pelo silêncio em sala e pela incorporação das regras. Meu cabelinho arrumado tinha sido uma mola propulsora em meio a hippies e cabeludos rebeldes.

    O modelo de escola foi formado pela inspiração prussiana da disciplina e pela concepção universalista do currículo francês. Conhecer um pouco de tudo, em absoluta submissão aos professores, formava bons operários, excelentes soldados e cidadãos pacatos.

    O mundo não anda, ele capota. Assim diz certo axioma de caminhoneiro. O mercado demanda criatividade. “Pensar fora da caixa” virou mantra. O repetidor de comportamentos ficou adequado a uma linha de montagem de uma fábrica asiática. Todos os modelos de sucesso do mundo empreendedor atual são alunos que deixaram o curso, quebraram princípios e reinventaram a si. O “nerd” vira subordinado de um visionário. O bom aluno será contratado para uma função secundária. Inspiração parece superar transpiração. Será?

    Ser um bom soldado ou operário produtivo é função digna. A questão é social. Classes baixas tendem a ressaltar a obediência para seus rebentos: “Prestem atenção a tudo aquilo que a professora fala”. Os alunos de classe alta são estimulados à autonomia. Há uma esperança em pais pobres de que a escola seja um seguro contra a vida mais difícil. Há uma consciência de classes altas sobre a importância de network fora dos bancos acadêmicos.

    Vou tocar em uma ferida. Na escola pública (maioria absoluta de espaço educacional no Brasil), os professores possuem pouca diferenciação social dos alunos. A biografia de quem fez uma licenciatura ou cursou pedagogia raramente é de um membro da classe A. Assim, o mundo possível também dialoga com a repetição e a disciplina que possibilitarão a conclusão do ensino médio e um emprego melhor. Com renda reduzida, poucos professores viajam. A maioria não compra livros ou faz cursos de atualização. Cumprem um trabalho muitas vezes extraordinário, mas lutam com uma realidade de ver o horizonte como seu aluno vê. O professor de escolas de elite dialoga mais com a ruptura, o projeto alternativo e a criatividade. Por vezes, ganhando mais, os profissionais de escolas privadas viajam mais e veem mais coisas, conseguindo, no meio impregnado de mercado, indicar coisas além do “sentem e copiem”.

    Não sou um utópico. O aluno-cliente das escolas privadas pode ser um desastre para qualquer projeto transformador. O que eu destaquei é como nós, professores, estamos olhando o mundo para confirmar ou desafiar o status quo.

    Uma escola disruptiva é uma necessidade contemporânea. O modelo é mais fácil no ensino fundamental e médio privado do que nas escolas públicas. Sim, há notáveis exceções. Há gente brilhante em escolas estaduais e mediocridades absolutas na educação escolar privada. Penso pela média que observo pelo Brasil. A pergunta é: que comportamentos e conhecimentos queremos estimular para alguém que será um adulto em 2040? Ordem e hierarquia serão essenciais? Estimular rebelião sobre os padrões será um atrativo? Com avanço de robôs, algoritmos e inteligência artificial, quais habilidades serão mais requeridas daqui a dez ou quinze anos?

    O questionamento é necessário para escolas de elite e públicas. Para qual horizonte preparar os alunos? “Copiem e decorem” terá alguma validade no mundo pela frente? Qual é a relevância da memória humana em um universo de smartphones? Disciplina e foco serão, curiosamente, diferenciais em um cotidiano disperso por telas? Entre Zaps e bites, chegou a hora revolucionária de discutir filosofia da educação. Ela é a grande meta de uma reorientação de conteúdos, práticas e avaliações. Sem atenção total ao ensino público, não teremos cidadania plena. Sem alunos críticos, teremos um desastre pela frente. Esperança?

     

    *Por Leandro Karnal

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