As joias das Arábias sujaram o caso do governo de Jair Bolsonaro numa trama chinfrim, com um colar numa mochila, um almirante-ministro tentando dar uma carteirada e um tenente-coronel do Palácio mandando um sargento para atropelar um auditor da Receita, sem sucesso.
Por pior que tenha ficado a situação do “mito” Bolsonaro, ele ainda está mais confortável que o imperador D. Pedro II, aquele monarca austero de barbas brancas e casacas negras. Numa conta fofoqueira, ele colecionou umas dez namoradas, entre as quais uma cunhada, mulher de seu irmão bastardo.
Enquanto rola a trama das Arábias, vale apena revisitar o roubo das joias da Casa Imperial, em março de 1882. A operação abafa custou caro a D. Pedro.
Depois do baile comemorativo de seus 60 anos, a Imperatriz mandou que um criado guardasse suas joias no palácio e subiu para Petrópolis. Dias depois, descobriu-se que as peças haviam sumido. Não só elas, mas também joias de sua dama de companhia e da princesa Isabel. Valiam entre 200 e 500 contos. A dotação orçamentária anual do imperador era de 800 contos, e um negro escravizado com habilidades custava perto de um conto de réis. Entre colares, brincos e pulseiras, os gatunos levaram mais de cem brilhantes.
No dia 21 de março, noticiou-se a prisão de três suspeitos. Um deles chamava-se Manoel de Paiva, irmão de um criado de D. Pedro II. Ele vivia na Quinta Imperial, em terreno que lhe havia dado o monarca. As joias foram achadas dentro de latas, enterradas num charco perto de sua casa.
Tudo mudou de figura porque, logo depois, os suspeitos foram libertados. A imprensa começou a tratar do caso com deboche, insinuando que o palácio havia montado uma operação para abafar o episódio. O palácio soltou uma nota esclarecendo que o imperador “jamais interveio direta ou indiretamente” no caso.
O primeiro golpe veio de José do Patrocínio, o republicano abolicionista. Ele começou a publicar um romance em capítulos, intitulado “A Ponte do Catete”. Nele, Leocádio de Bourbon tinha um criado que lhe arrumava amantes.
Logo depois foi a vez de outro jornal sair com o romance “As Joias da Coroa”. Seu autor era o jovem Raul Pompeia. Nele, o Duque de Bragantina, senhor da Quinta de Santo Cristo, tinha como alcoviteiro o amigo Manuel de Pavia. (Qualquer semelhança com Manoel de Paiva seria coincidência.)
Ao mistério da libertação dos gatunos juntou-se uma insinuação. Manoel seria o alcoviteiro de D. Pedro II e seu silêncio havia sido comprado com o relaxamento das prisões e o esquecimento do caso.
Num terceiro folhetim, “Um Roubo no Olimpo”, o teatrólogo Arthur de Azevedo foi explícito. Mercúrio, criado de Júpiter, ameaça-o dizendo que contará o que sabe.
A condessa de Barral foi profética:
Luísa de Barros Portugal, Condessa de Barral, namorada de D. Pedro II, escreveu-lhe de Paris:
“Longe de mim o pensamento que Vossa Majestade exercesse a menor influência sobre a marcha da polícia e da Justiça, mas soltarem os acusados sobre os quais pesam suspeitas tão graves, pelo mero fato de se terem achado as joias é uma flagrante imoralidade, e eu digo com não sei que jornal que na lama donde se tiraram os brilhantes, se enterrou a Justiça. Quem me dera poder conversar disso tudo com meu amigo e Senhor para saber toda a verdade, mas essa ventura nunca terei. (...) Repito que fiquei com nojo de tudo isso.”
Com razão, porque ela logo cairia na roda e se queixava:
“Já tardava que minha vez não chegasse, pois que a liberdade da imprensa de nossa terra não respeita a ninguém. Apesar de não querer me afligir com semelhantes coisas devo-lhe confessar que sinto certa curiosidade em saber o papel que vão me fazer representar num nojento pasquim da ponta do Catete e o que virá depois desta frase: amanhã é o dia da Condessa! (....) — Isso só se deveria levar a chicote, e se um dia não se punir severamente o libelista não sei onde irá parar a realeza e a Sociedade brasileira (...) Quem será o bicho peçonhento que escreve esses folhetins?
(Era José do Patrocínio.)
A essa altura o “Mequetrefe” abandonou os nomes fictícios e mencionou o imperador:
“É um dom Juan da força. Ninguém será capaz de acreditar que este homem com suas barbas apostólicas e cara de caju-banana, santarrão, vestido com desalinho (...) seja capaz de tanto. Ele é um homem de gosto. Tem um paladar muito delicado, gosta dos acepipes finos. É doido por um caldinho de franga (...) Afirma o Paiva, seu confidente, amigo e companheiro, nas misteriosas correrias noturnas.”
O roubo das joias foi um fator relevante no desmonte do mito imperial. Sete anos depois D. Pedro II foi deposto, José do Patrocínio formalizou a proclamação da República e Raul Pompeia assumiu a presidência da Academia de Belas Artes.(Do Globo)
*Por Elio Gaspari