O ex-tenente-coronel José Afonso Adriano Filho, apontado como chefe de um dos maiores esquemas de corrupção da história da Polícia Militar de São Paulo, afirma que em todas as unidades gestoras da corporação há esquema de desvio de verbas públicas, por meio de caixa 2, semelhantes ao montado por ele.
"Todas as unidades [gestores executoras da PM] têm caixa 2. Todas [as 104] têm. Quem falar que não tem está mentindo", diz ele em entrevista exclusiva, a primeira desde a revelação do caso, em 2015, pela Folha.
Adriano Filho conversou com a reportagem na Penitenciária 2 de Tremembé, no interior do estado, onde cumpre pena de 52 anos de reclusão por peculato, referente a dois processos, sob a acusação de ter fraudado licitações destinadas ao comando geral da corporação. Ele está preso desde 2017.
O crime de peculato ocorre quando um funcionário público, em razão do cargo que ocupa, desvia bens ou recursos públicos em benefício próprio ou de terceiros.
Segundo a acusação, empresas criadas pelo ex-coronel ganhavam licitações da PM organizadas por ele mesmo. O serviço não era prestado, e todo dinheiro era desviado.
Adriano, porém, alega que os únicos beneficiados pelos desvios foram terceiros: um grupo de 27 oficiais que passaram a recorrer sistematicamente ao dinheiro obtido por meio de licitações.
Adriano diz que o esquema funcionou por cerca de sete anos (2005 a 2012) e injetou mais de R$ 2 milhões nas contas particulares desses oficiais, que chegavam a formar fila na porta da sala dele, na sede do comando-geral. O ex-coronel disse que, em razão do volume, acabou obrigado a colocar um cofre na sala dele, onde mantinha cerca de R$ 150 mil em espécie para atender aos pedidos.
Os oficiais levavam os valores em dinheiro vivo, por meio de cheques ou, ainda, ao indicar despesas a serem pagas, como festas e aluguel de imóveis para amantes.
Adriano diz que acabou se tornando uma espécie de "BNDES dos coronéis", fazendo repasse de dinheiro para projetos particulares dos chefes, mas com um benefício que nenhum banco é capaz de oferecer: os oficiais não prestavam contas ou precisavam fazer a devolução de dinheiro. Tornavam-se, assim, doações.
Para demonstrar a suposta conivência dos oficiais com o esquema, Adriano entregou à Folha cópias de documentos, entre eles canhotos de cheques com a anotações de valores e nomes de seis oficiais supostamente beneficiados.
Como os cheques repassados estavam, segundo ele, em nome da Comercial das Províncias, uma das empresas usadas pelo ex-coronel no esquema, seria impossível os beneficiários alegarem que acreditavam se tratar de dinheiro da PM.
Também seria fácil, segundo ele, a Corregedoria rastrear o dinheiro, o que nunca foi feito.
Ao todo, o ex-tenente-coronel entregou 14 documentos que, segundo ele, fazem parte de um conjunto de 194 evidências guardadas. Em 2017, quando Adriano tentou negociar uma delação premiada, a existência desses documentos foi ventilada, mas nada se tornou público na ocasião.
Adriano diz, ainda, que todos os comandantes da PM tinham conhecimento do esquema e, em ao menos um caso, até a mulher de um PM. Seria a esposa do coronel Alvaro Camilo, então comandante-geral e atualmente subprefeito da Sé. A companheira do oficial teria solicitado uma verba para dar ternos de presente ao marido, pleito apresentado pelo ajudante de ordens de Camilo, major Marcelo Hideo Takarabe.
"Ele [Takarabe] descia na minha sala, falava que precisava levar o do mês [de Camilo], precisava levar R$ 5.000. [Eu] Dava R$ 5.000. Teve uma vez que ele chegou, eu tenho na memória, informando que a esposa do comandante pediu R$ 14 mil para fazer compra de roupas. Peguei, dei os R$ 14 mil. Se ele entregou ou não, não é problema meu", afirmou o ex-tenente-coronel.
Além desse "mensalinho" de R$ 5.000, conta Adriano, o coronel Camilo foi beneficiado de várias outras formas: pagamento da internação do filho em clínica de reabilitação de dependentes químicos, reforma de um apartamento incendiado por esse mesmo filho e uma série de eventos particulares que faziam parte do projeto político do então comandante para concorrer a um cargo eletivo.
Ele estima um repasse de cerca de R$ 150 mil nesse período a Camilo.
Um dos mais beneficiados pelo esquema, conforme diz, foi o coronel João Cláudio Valério, coordenador do GSP (Grupo de Planejamento Setorial), órgão da Secretaria da Segurança Pública. Teria sido esse oficial, atualmente na reserva, quem teria dado o aval para a criação do esquema.
Somente esse oficial teria recebido cerca de R$ 600 mil, incluindo despesas de uma amiga. O ex-coronel entregou à Folha um recibo de R$ 7.685,43 de uma imobiliária em nome de uma mulher chamada Maria, referente a reparos, energia elétrica e condomínio de salas comerciais.
Também foi entregue cópia de boleto pago por ele com endereço da SSP.
Um dos filhos de Valério, também oficial, teria recebido recursos. Hoje na reserva e subprefeito da Mooca, Marcus Vinícius Valério chegou a ser subcomandante da PM entre 2020 a 2022. "Esteve lá diversas vezes. Repassei uns R$ 120 mil pra ele, de forma picada", afirma Adriano.
Outro suposto cliente do "BNDES" de Adriano foi, segundo ele, o desembargador militar Eduardo Orlando Geraldi, coronel da PM paulista. Conforme diz, esse oficial começou a pegar dinheiro quando comandava uma unidade da corporação na capital e, depois, continuou quando assumiu o cargo no TJM (Tribunal de Justiça Militar), onde chegou a ser presidente e, hoje, ocupa o cargo de ouvidor.
"[A primeira vez] Foi lá no QG [quartel-general]. Bateu na porta e falou assim: ‘Eu estou precisando de um dinheiro’. Aí, dei dinheiro. Teve um depósito. Teve mais depósitos que eu guardei. Então tem um depósito aqui que é de R$ 15 mil. Tem outro de R$ 7.000, tem outro de R$ 8.000. No total, foram uns R$ 120 mil. R$ 120 mil, mais ou menos", disse Adriano.
Sobre Geraldi, o ex-tenente-coronel entregou à Folha cópia do número de uma conta bancária anotado em papel, que teria sido feito de próprio punho pelo coronel. Também há registro de depósito em conta.
O ex-tenente-coronel disse, ainda, que parte dos documentos entregues à reportagem também foi enviada à Corregedoria, mas as informações nunca foram investigados devidamente.
Até agora, somente Adriano foi, de fato, punido com a perda de cargo.
Ele afirma que os corregedores produziram provas contra ele para agravar sua situação, o que ainda ocorre em busca de novas condenações. "O absurdo da prática cultural da produção de provas. Produção ardilosa. Você é pego com um quilo de maconha e você é denunciado por estar com 500 quilos de maconha", disse.
Já os oficiais apontados por Adriano como beneficiários do esquema afirmam que essas acusações foram investigadas e arquivadas pelo Promotoria.
Procurado várias vezes desde o final do mês passado, o Ministério Público paulista não informou se essas denúncias feitas por Adriano foram, de fato, investigadas. A Promotoria também não explicou se os promotores se recusaram a firmar um acordo de delação premiada e por qual motivo.
CITADOS DIZEM QUE SUSPEITAS FORAM INVESTIGADAS E ARQUIVADAS
Em resposta à Folha, o desembargador militar Orlando Eduardo Geraldi disse que as acusações feitas por Adriano foram investigadas pela Promotoria e arquivadas. "Não há o que comentar, porque estas acusações feitas no passado foram arquivadas pelo Ministério Público", diz nota enviada à reportagem.
A cúpula do TJM também não quis se manifestar.
Uma reposta parecida foi enviada pelo coronel Camilo.
"Esclareço que quando eu era Comandante-Geral, em 2011, assim que soube de supostas irregularidades, determinei imediata apuração, afastei o ex-PM de suas funções e o transferi de unidade. O resultado dessas investigações culminou em sua condenação pela Justiça, perda de sua patente e salário. Esse assunto já foi investigado pelo MP e restou arquivado."
Takarabe disse que não vai comentar as afirmações porque, para ele, é "assunto esgotado".
O coronel João Cláudio Valério não quis comentar o assunto.
O filho dele, Marcus Vinícius Valério, negou ter pegado dinheiro. "As acusações são infundadas e são as mesmas que já haviam sido feitas pelo ex-oficial em 2017, logo após ter sido preso. Tudo amplamente apurado pela Corregedoria da PM", disse em mensagem enviada.
O ex-corregedor-geral da PM, coronel Marcelino Fernandes da Silva, hoje na reserva e professor universitário, disse que não comenta "falas de investigado e condenado pela Justiça e que a verdade neste caso já foi apurada e julgada pela Justiça!".
Em nota, a PM de SP diz que "os crimes até o momento comprovados são de extrema gravidade, motivo pelo qual as investigações em curso são prioridades absolutas do comando", aponta trecho da nota.
Ainda conforme a PM, uma sindicância detectou indícios de irregularidades na gestão do ex-tenente-coronel. Posteriormente, um IPM (Inquérito Policial Militar) foi instaurado e auditou mais de 5.000 processos, o que levou à abertura de 244 novos IPMs.
"Destes, oito foram finalizados com indiciamento, tendo dois deles sido concluídos com condenações. Adriano, que também foi condenado na esfera administrativa à perda do posto, da patente e de seus vencimentos, já fez as mesmas acusações em oitivas, sendo todas de conhecimento da Corregedoria e objetos de investigação. Outros 148 IPMs já foram arquivados e 88 estão em instrução, mas não terão seu conteúdo divulgado por conta do sigilo legal."(da Folha de SP)