O governo brasileiro deixou de arrecadar R$ 4,3 bilhões em impostos ao longo de nove anos graças a incentivos tributários concedidos à Coca-Cola. É a primeira vez que se tem acesso ao tamanho do valor, provocado pela redução de 75% no imposto de renda sobre os lucros da Recofarma, unidade do sistema Coca-Coca que fabrica os concentrados, principal matéria-prima para a produção de refrigerantes.
Esse montante pode ser ainda maior – ele corresponde a apenas uma entre várias modalidades de incentivos que fazem do Brasil um lugar estratégico para a corporação.
Os valores foram obtidos por O Joio e o Trigo, em parceria com a Fiquem Sabendo, via Lei de Acesso à Informação. Foram meses de idas e vindas de pedidos no Ministério da Fazenda e na Receita Federal. Até então, os pedidos eram negados com o argumento do sigilo fiscal.
Localizada no distrito industrial na capital do Amazonas, a Recofarma goza de uma série de benefícios previstos na Zona Franca de Manaus, um regime especial de tributação criado na década de 1970. E que foi mantido pela reforma aprovada no governo Lula, a despeito do que propunha o projeto original.
O volume de impostos que a corporação deixa de pagar no Brasil pode ser ainda maior. Os R$ 4,3 bilhões não incluem outros tributos que fazem parte do pacote de vantagens, nem a devolução de créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados cobrados pelas envasadoras ao comprar o concentrado – manobra sobre a qual falaremos adiante.
Os dados mostram que, em nove anos, o valor poupado pela Coca apenas em imposto de renda mais do que triplicou. O montante mais alto foi registrado em 2022, quando chegou a R$ 860 milhões. Ou seja, quanto mais o mundo se preocupa com a explosão do índice de doenças crônicas (como diabetes, hipertensão e câncer), maior o benefício concedido a um produto-símbolo do problema que, em grande medida, desemboca no SUS e onera duplamente os cofres públicos.
Por trás do gigantismo de uma corporação como a Coca-Cola, há uma capacidade notável de contornar tributos. E de incidir sobre o debate público e o ambiente político. Na Bahia, por exemplo, mostramos que só em ICMS a Coca poupou R$ 540 milhões em isenções ao longo de dez anos.
Assim como a permanência na ZFM, a manutenção do modus operandi tributário das envasadoras é fundamental para a maior fabricante de refrigerantes do mundo.
No jargão corporativo, trata-se de um esquema em que a Coca-Cola ganha-ganha e a sociedade brasileira perde-perde.
A Receita Federal contesta desde os anos 1990 o uso de uma manobra tributária. A Constituição de 1988 permite cobrar créditos entre uma etapa e outra de distribuição como uma forma de evitar impostos em cascata. Assim, por exemplo, uma marca de roupa pode fazer jus a um crédito calculado pela diferença de tributação entre a peça acabada e as matérias-primas, como tecidos e linhas.
No caso da Zona Franca, as engarrafadoras não recolhem IPI, mas cobram os créditos como se recolhessem. Isso explica por que as empresas de refrigerantes sediadas na ZFM lutam para manter esse tributo e com a alíquota mais alta possível. Como mostramos desde 2017, o setor de refrigerantes chegou a representar uma arrecadação negativa para o governo, ou seja, quanto mais desse produto se vende, maior é o rombo no orçamento público.
“Apoiamos a reforma tributária, mas apoiamos uma reforma que não seja discriminatória, que não eleve a carga tributária e que preserve o modelo de valorização e empregabilidade da Amazônia, a Zona Franca de Manaus”, defendeu, em artigo de opinião, Victor Bicca Neto, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e diretor de Relações Governamentais da Coca-Cola.
No restante do Brasil, todos esses impostos deixarão de existir em alguns anos, mas o regime diferenciado da Zona Franca foi mantido, após muita pressão de parlamentares do Amazonas e dos setores econômicos envolvidos.
O texto aprovado na reforma tributária prevê a extinção do IPI, com a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços, a CBS, a partir de 2027.
A exceção é para os produtos similares aos que são fabricados no Polo Industrial de Manaus. Ou seja, a discriminação de fato, do ponto de vista fiscal, foi mantida para quem fabrica esses mesmos produtos fora da Zona Franca.
Estes seguirão pagando IPI e arcando com um custo tributário bem maior.
É o caso das fabricantes nacionais de refrigerantes. “No Brasil inteiro hoje você vai a um supermercado, você só encontrará Coca e Ambev. Somando as duas, passam de 80% do mercado de bebidas no Brasil. Isso por si só já é um problema, mas é um programa mercadológico”, explica Fernando Rodrigues de Bairros, presidente da Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil, a Afrebras.
De fato, em um documento de 2018, a Receita alertou que as empresas sediadas na Zona Franca vinham usando os créditos indevidos como uma forma de minar concorrentes.
“Isso se agrava quando os impostos não são neutros para a concorrência. Você tem barreiras de entrada e não consegue empreender. A tributação na composição dos preços finais prejudica ainda mais a situação das indústrias nacionais. Por que a tributação hoje não é neutra? Quando você olha pelo lado social, você tem o lado social através da Coca e da Ambev? Não tem porque eles não recolheram os impostos”, critica.
A Afrebras representa marcas pequenas e nacionais, como fabricantes de tubaínas, guaranás e sodas. Em geral, são marcas conhecidas regionalmente que enfrentam o duopólio de corporações e, por vezes, difíceis de encontrar. A grande maioria são empresas familiares e de pequeno porte que, por terem processos de produção menos mecanizados e mais artesanais, geram mais empregos, segundo Bairros.(The Intercept)