Não sou de modo algum especialista em mística islâmica, mas, por sorte, tenho alguns amigos que são. E, devo dizer, a mística islâmica é das mais belas no panteão das diferentes religiões.
Na história das diferentes formas de mística, sempre me dediquei à mística judaica hassídica do Leste Europeu a partir do século 18 e à mística cristã ortodoxa bizantina e russa desde seus primórdios. No tocante à mística católica, minha paixão sempre foi a mística dos séculos 13 e 14, especialmente a obra do dominicano alemão Mestre Eckhart, e da mística feminina de então, com atenção maior as obras da francesa Marguerite Porete, da alemã Mechtilde de Magdeburg, da belga Hardewijch de Antuérpia e da italiana Ângela de Foligno.
Junto com meu amigo e colega professor doutor Faustino Teixeira da Universidade Federal de Juiz Fora, realizamos por dez anos consecutivos, a partir de 2001, seminários anuais de mística comparada em Juiz de Fora. Graças a esses seminários, a mística feminina medieval europeia chegou com força à academia brasileira.
Mas, não é disso que quero falar hoje com você. Quero falar de uma conferência inesquecível em um desses seminários anuais que vi de uma colega —infelizmente morta muito jovem—, também professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, Vitória Peres de Oliveira.
Ela falou sobre um movimento místico islâmico ativo no século 9 em regiões da Pérsia e do Afeganistão, conhecido pela crença de que a piedade mística —ou seja, a consciência de ter experiências diretas de Deus, Alá— devia ser mantida no âmbito absolutamente privado.
A literatura especializada em mística é conhecida por tratar do ímpeto de transmitir a experiência mística como decorrência do encontro com a beleza e a imensidão da divindade. Entretanto, esse ímpeto encontra um impasse: a linguagem não é capaz de conter e transmitir essa experiência.
Apesar desse impasse, os textos místicos são riquíssimos em transmitir essas experiências a partir de categorias que são encontradas, muitas vezes, em diferentes correntes místicas das mais diversas religiões. Estudos especializados existem em abundância acerca dessas categorias comparativas.
Este movimento islâmico ao qual fiz referência acima ficou conhecido como "malamatis" ou "malamatiyya", cuja origem das duas palavras, segundo os entendidos em árabe, seria "culpa". O comportamento deles é que me chamou atenção, assim como a de todos que transitam pelo estudo acadêmico da mística.
Os "malamatis" nunca falavam da sua experiência mística enquanto tal, apesar de serem reconhecidos pela comunidade como um grupo profundamente religioso e espiritual.
Muito pelo contrário, poderiam ser confundidos com ateus, descrentes, céticos, ou mesmo distantes das práticas religiosas, devido ao silêncio acerca da sua "intimidade" com Alá.
Aversos ao discurso religioso enquanto tal, sua teologia parecia suspeitar que uma "confissão mística" levaria as pessoas a "adorá-los" e isso, necessariamente, os levaria a incorrer num tipo de orgulho típico de candidatos a santidade: o orgulho de se acharem muito próximos do Misericordioso.
Pelo contrário, e não só no caso dos "malamatis", um dos restos cognitivos —expressão cunhada pelo filósofo americano William James no seu famoso estudo sobre "A Variedade das Experiências Religiosas", de 1902— mais comuns em místicos e santos é a percepção da infinita distância entre a beleza de Deus e nós.
Ao contrário do que pode parecer aos desavisados, essa distância é motivo de uma profunda leveza. Não se trata de humilhação, mas de humildade, virtude essencial numa vida religiosa profunda.
Os "malamatis" viviam seu cotidiano como se nada soubessem acerca de Deus. Diante dos religiosos confessos e seguros de seu "parentesco" com o Misericordioso, os "malamatis" agiam como os mais miseráveis do mundo, totalmente apartados de qualquer vida espiritual evidente.
Certos da sua condição de pecadores sem salvação.
De um ponto de vista meramente comportamental, o silêncio absoluto dos "malamatis" era pura elegância espiritual.
*Por Luiz Felipe Pondé