O MORTO
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José Carlos Santos Peres
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O Morto é eloquência na severidade
do bigode,
na rigidez das mãos postas em crucifixo
de prata.
Destoa a cortina em azul ao vento da tarde
trazendo o agridoce de quintais:
pêssegos, romãs, tangerinas e maças...
Do mais longe um sino anuncia O Morto
numa reza comprida que se estende, e passa;
como passam vendedores de picolés,
cocadas, algodão-doce, queijadinhas
e baús de miçangas e cetins;
Um afiador de tesouras se anuncia ao Morto.
Mas O Morto está só;
a moça em leque debruça uma lágrima/dádiva
enquanto um velho realejo
entoa monocórdico um lamento apressado.
Na sala ao lado homens
em tom menor:
a arroba, a safra, as eleições...
De quando em quando O Morto
sai da ausência e dele se ocupam
respeitosamente.
Mas O Morto está só...
Absolutamente só com seu bigode
e crucifixo de prata.
Só e inútil como a bengala
com cabeça de cavalo:
espólio que a viúva carrega
num misto de tristeza e enfado.