Da noite de todos os anos me vem o menino filtrando o vento da liberdade; riso-oceânico e um mundo cultivado em quintal de gerânios, bananeiras, tábua de bater roupas e sombras preguiçosas acariciando lagartos. Como um rio invadindo margens nas temporadas das águas, dum dezembro de maritacas picotando o silêncio de quando/quando, o menino era maior que os limites das cercas em lascas de guarantã, do vento nos cabelos das araucárias em noites mais noite; maior que os monstros que habitavam os pegadores em porcelanas de portas desabitadas do velho casarão da fazenda de Diamantino. O menino era maior que o cavalo indomável que rasgava a planície naquelas horas de aboio sem boi; que a prateleira de cristais que o céu exibia em noites azuis... Maior que a solidão de abutres pastoreando o alto, num silêncio a palo seco: esse cante sem o cante, esse cante sem mais nada. O Natal do menino era maior que surpresa embrulhada em papel brilhante, porque o Natal do menino era maior que todas as surpresas do mundo. Ter a mãe batendo roupas, numa canção monocórdica se misturando a tessitura do som da água do rio, e na tecitura em fios imaginários costurando a manhã era Natal. A mãe era Natal! O pai vinha ao galope da tarde despovoada de nuvens trazendo todos os recados do trigal, do milharal em ouro, de seus mundos imensos e imemoriais... O pai no galope esperado da tarde era natal! As lembranças mais tardias me trazem um velho fantasma – que meninos sabem de fantasmas - esgueirando-se quando a tarde se entregava; o aroma da manga-rosa cumprindo sua tarefa de amadurecer o tempo, o canto tricotado do canário-da-terra, a conversação do rio deslizando sobre pedras o lamento daqueles que um dia nele se banharam... O rio era Natal! Como o rio, o menino alargou-se por margens desconhecidas em busca de tesouros imaginados. Desmanchou-se como a brisa pelos cachos coloridos do trigal, tomou do seu nada em embornal dos sonhos, enquanto o quintal com sua sombra e seus galos, gerânios e achados se recolhia para um adeus sem volta. Hoje o homem quer o gosto-gentil de pêssegos amadurecendo manhãs, a reza sem fim da Ave-Maria das seis, o sino da velha capela puxando o coro dos pássaros, antes de se perder pelos desvãos. O homem quer um pedaço do ontem: um torrão com a mais vermelha das terras, sementes de girassol, um pássaro verde desgarrado, aquele aboio sem boi na madrugada do velho fantasma, e os segredos das porcelanas de portas desabitadas.
O menino foi Natal!
(Santos Peres)