Uns fecham portadas,
e se encerram na paisagem.
Outros habitam quimeras,
extintos magmas interiores.
Eu vivo apenas fora de mim.
De longe
me chegam palavras
e nenhuma cabe
no oco da minha mão.
Apenas de outros me faço eu.
Espreito a rua
e, através de mim,
não vejo senão gente
que nasce sem sonhos e vive sem vida.
Sou o homem sem janela:
o mundo está sempre do lado de cá.
A meu lado
não mora ninguém:
meus vizinhos
habitam todos dentro de mim.
Ao fim da tarde,
porém, o céu se curva
para afagar o meu teto.
Em redondo dorso de cão,
a meus pés se enrosca a solidão.
É enfim que chegas,
e eu, enfim, regresso
para dentro de minhas paredes.
Só então tenho janela.
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Mia Couto
Em "tradutor de chuvas"
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