Há muitas questões quando se discute o conceito de fascismo. Uma delas seriam os “historiadores puristas”; os fascismos são fenômenos do período entreguerras, tendo como modelos o pioneiro fascismo italiano e o nazismo alemão. O Franquismo, o Salazarismo, o Estado Novo brasileiro e o Peronismo teriam traços como o corporativismo ou como a legislação trabalhista em comum, mas o fato histórico puro do fascismo só existiu entre 1922 e 1945. Assim, pode-se ter uma “atitude inquisitorial”, mas a Inquisição como fato histórico pertence à Idade Média e Moderna. “Caça às bruxas”, “nazista”, “iluminista” são metáforas ou metonímias de coisas únicas no passado.
Outros pesquisadores oferecem um campo distinto. Wilhelm Reich (1897-1957), psiquiatra, lançou um livro ainda em 1933 com o título Psicologia de Massas do Fascismo. Ali, vemos questões da repressão sexual e do controle das ansiedades das pessoas. O texto indica, assim, uma leitura psicologizante do fascismo. Se a raiz dos movimentos autoritários – conhecidos hoje como nazismo ou fascismo – está na repressão sexual, podemos dizer que, onde houver mecanismos psíquicos similares, existirá adesão ao projeto fascista. Assim, de fato único, o fascismo se torna algo mais atemporal, que pode se repetir sempre.
Na década de 1950, Hannah Arendt fez análises, aproximando o Stalinismo como movimento totalitário para controle das massas. Origens do Totalitarismo é um livro que aumenta as vendas quando, por exemplo, Donald Trump sobe ao poder nos EUA. Essa postura, de alguma forma, está contida na ideia de Bertolt Brecht (A Resistível Ascensão de Arturo Ui): “A cadela do fascismo está sempre no cio”. Os fascismos e os totalitarismos são como as herpes que retornam quando a resistência baixa.
Circunscrito ao período entre as duas guerras mundiais do século 20 (ou um tipo de “ovo da serpente” que se choca em muitos momentos), o fascismo vem a ser elemento retórico de largo emprego. O filósofo Leo Strauss criou a expressão “reductio ad hitlerum” como um tipo de falácia em que se afirma: o argumento contrário (ou a pessoa adversária na discussão) “é/são igual/iguais a Hitler”. Exemplo curioso? O nazismo foi pioneiro em estudos sobre os efeitos negativos de tabagismo (Hitler odiava cigarros). Assim, se alguém manda apagar um cigarro, seria, claramente, uma atitude nazista. Um mesmo tema volta com a chamada Lei de Godwin de 1990: “À medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação (envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas) tende a 100%”. É fácil entender: o autoritarismo, a violência, o racismo e o Holocausto promovidos por Hitler são tão medonhos que usar a transposição da figura hedionda do pintor austríaco bastaria como argumento.
Em 2020, em pleno começo da pandemia e ainda sem horizontes de vacinas, Alexandre Gossn lançou o pequeno livro Fascismo Pandêmico – Como uma Ideologia de Ódio Viraliza? Um Breve Ensaio Sobre a Alma Fascistoide (Rio de Janeiro, Autografia). O autor destaca que o fascismo (na esteira de Reich) é um fenômeno psíquico de massas e, como tal, não exclusivo do passado. O fascismo é uma paixão que necessita de uma fagulha como uma pandemia ou como uma crise social. Para enfrentar o drama do momento, alguns líderes e movimentos inventam um passado idealizado como algo único (tudo era melhor quando) e usam o ressentimento do “zé-ninguém” para combater a angústia das ideias plurais e cheias de matizes. Para manter a unidade, apela-se à ideia de Pátria como suprema unidade. Como diz o autor: “O fascismo é universal. É um dialeto que fala à alma humana” (p. 35).
Para Gossn, o ódio tem poder galvanizador e transforma adversários políticos em inimigos a serem destruídos. Curiosamente, o fascismo é romântico, pois “não se assenta na realidade, mas sim em premissas idealizadas de um universo que será pacificado pela força, para depois se transformar no reino da paz” (p. 63).
O mundo real ao redor é frágil, cheio de mi-mi-mi, ambíguo e coloca em risco a certeza de ideias concretas. Contra isso, os fascistas usam a sedução da força para restaurar suposta unidade. Assim, abrindo mão de um tipo de ortodoxia histórica, ele define que o fascismo “não é a causa, mas a consequência de movimentos psíquicos nos esgotos da alma coletiva” (p. 76). O fascismo histórico morreu, mas deixou bisnetos – pondera o autor.
Óbvio que o livro tinha um alvo político específico que paira sobre o texto, como o fantasma do pai de Hamlet. As análises são bem-feitas, ainda que misturem pessoas que conversariam pouco sobre o tema como Freud e Jung. Talvez incomodados por modelos tão terríveis como Hitler, nós tenhamos perdido de vista que o ódio é anterior ao fascismo, bem como o antissemitismo tenha nascido antes do nazismo. Os esgotos da alma humana, como diz o autor, recebem nossos medos muito antes dos horrores de Auschwitz e de Gulags; vermelhos ou verde-amarelos mostram que o medo pode ser transformado em força política sempre. Minha esperança é: gente lendo, com senso crítico.
*Por Leandro karnal