"Amor não paga boletos", retrucaram as redes sociais ao comentário infeliz de Tarcísio de Freitas (Republicanos). Disse o governador paulista: "A gente sabe que os professores não têm a melhor estrutura nem os melhores salários, mas eles têm muito amor. E quando a gente for resolvendo as questões sociais, vamos dar melhor condições para eles trabalharem".
Dizer que faltam estrutura e salários "melhores" é eufemismo, já que o governo de São Paulo sabota há décadas a estrutura da carreira, as condições de trabalho e a evolução remuneratória dos docentes, contornando a lei do piso salarial do magistério com um malandro "abono complementar". Mais da metade dos cerca de 200 mil docentes da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) possui contratos temporários. A taxa é superior à média nacional de 42%, calculada sobre todas as redes públicas, inclusive de municípios paupérrimos.
Uma nota técnica da Rede Escola Pública e Universidade (Repu) mostrou também que, em maio de 2022, após 13 anos das mudanças no plano de carreira em São Paulo, 47% dos professores da rede ainda se encontravam no primeiro estágio da carreira. Uma única pessoa havia atingido o 40º degrau de um sistema com 64 estágios! Daí que, a despeito de uma nova carreira implantada em 2022, a maioria dos docentes se exonere da rede estadual bem antes de progredir ao patamar do salário digno. Falta de amor?
Quem quiser ingressar nessa carreira como professor efetivo descobrirá que mestrado, doutorado e anos de experiência profissional pesam menos que o desempenho numa videoaula. Assim é o concurso que a Seduc-SP, gerida por um empresário com espírito de "coach", passou a promover.
Quanto aos docentes temporários (os chamados "categoria O"), milhares deles iniciaram o ano letivo de 2024 sem saber que aulas iriam ministrar. Como já é tradição na rede paulista, os estudantes celebraram o final das férias escolares com uma profusão de aulas vagas.
Com meses para organizar turmas, a Seduc-SP produziu —segundo profissionais da própria rede— a "pior atribuição de aulas da história". Sem equipes consolidadas nas escolas, atividades de planejamento pedagógico perderam o sentido.
Seja como for, planejar não é uma preocupação na Seduc-SP, que aposta todas as fichas no controle tecnocrático do trabalho docente via plataformas e na imposição de material didático pasteurizado e ruim (os tais slides). No governo Tarcísio, subestimar a capacidade intelectual do professorado é ponto de partida.
Quem quiser exibir um documentário nas aulas terá de fazê-lo, com muito amor, usando seu próprio plano de dados móveis, pois a Seduc-SP acaba de vedar aos professores o uso da internet das escolas para acessar plataformas de streaming.
E como Tarcísio pensa resolver tantas "questões sociais" que aviltam o professorado? Uma das medidas de seu governo é propor uma emenda à Constituição do Estado de São Paulo para reduzir o investimento anual em educação de 30% para 25% da receita de impostos.
Tanto desamor nos convida a indagar se o governador só está se portando cinicamente ou se, de fato, desconhece o que se passa na rede de ensino do estado que administra. Caso desconheça, é mister que se eduque a respeito. Se não pelo reconhecimento profissional de quem se formou para a docência, ao menos pelo amor que nutre pelo cargo.
*Por Fernando Cássio
Professor da Faculdade de Educação da USP, integra a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação