* Por Leandro Karnal
A palavra mito está associada a uma narrativa não confiável. Sua existência real não pode ser comprovada. “Isso é mito”, quer dizer, isso não existe. Criamos textos como “dez mitos da nutrição” para falar de falsas crenças. O mito é mágico, impreciso, todavia resistente. O mito sempre permanece. Por quê?
De muitas formas o mito tem força. A primeira é explicar aquilo que é complexo demais de outra forma. Uma constelação, como a Via Láctea, fica mais poética se imaginarmos que era o leite de Juno, ao afastar o jovem bebê Hércules, que sugava o divino seio com energia excessiva. A origem de uma galáxia é complicada; o mito da deusa machucada pelo enteado é mais rápido e belo.
Papai Noel é mais fácil do que o sistema de compra e venda do mercado, no fim do ano. “Por que ganhei presente, mamãe?”
Resposta um: “Houve um acordo na década de 1960 sobre o décimo terceiro salário. Ele deveria colaborar para injetar capitais no varejo e ajudar a liberar estoques retidos.
Do ponto de vista psicanalítico, há, também, nossa culpa como pais, combinada com o reforço simbólico do calendário aleatório. Assim, decidimos comprar esta surpresa para você”.
Resposta dois: “Um velhinho chamado Papai Noel recompensa crianças ao longo do ano boazinhas”.
Simplificação
Use as duas respostas para uma criança de cinco anos e analise o primeiro patamar do mito. Porém, os exemplos cometem uma simplificação injusta: o mito seria uma resposta infantil, ao passo que a científica seria a de adultos. O mito atinge o mundo das pessoas crescidas – de forma direta e insistente.
O mito organiza em uma narrativa os valores de uma sociedade. O castigo a quem infringe normas vem mais rápido pelo mito. Duendes e espíritos obsessores atacam a casa de quem deixa louça suja. Fantasmas assombram quem não cumpriu disposições finais do falecido. Assim, quando uma sociedade cria dispositivos morais e interditos, cria também mitos de punição para consagrar tais valores.
O lugar de castigo além da vida faz surgir, em quase todas as culturas, a ideia de inferno. Infernos e paraísos são espelhos míticos do mundo real e terreno.
UNIVERSO. O mito compensa, simboliza, organiza, explica e torna tudo coerente. O mito mostra forças que atuam para regular o universo. Édipo tentou escapar da profecia e descobriu que era impossível. O mito é uma justiça inevitável: Cassandra tinha razão sobre o fim de Troia. Nostradamus sempre tem razão; se não tiver, a interpretação das suas centúrias torcerá o texto até que tenha. O mito é um eterno retorno.
Não há sociedades sem narrativas míticas. A ultra-ateia URSS criou inúmeros mitos sobre a superioridade da experiência soviética. Inventam-se heróis, protetores, entidades e até múmias, como a de Lênin, para serem relíquia material de um valor simbólico.
Lênin existiu. Seu corpo preservado é apropriado pelo Estado de forma teatral e permanente para criar um mito em torno de Vladimir Ilyich Ulianov, o nome não mítico do corpo da Praça Vermelha. Papai Noel, de vermelho, ajuda o capitalismo; Lênin, de preto, ampara o socialismo. Ambos possuem funções míticas. Sim, Papai Noel nunca matou ninguém, mas há mais crianças com medo dele do que de Lênin. A Guerra Fria ainda não habita o imaginário infantil.
A leitura inicial é de Joseph Campbell (1904-1987): O Poder do Mito. O norte-americano era católico e começou sua busca pelas máscaras que o herói poderia assumir. Talvez o estudo feito sobre o sânscrito tenha aberto seu mundo para a universalidade de algumas narrativas. Quase todo mundo que lê o livro dele tem uma iluminação. É uma obra baseada em um documentário. Isso ajuda na rapidez e beleza da narrativa. Houve muita crítica acadêmica a Campbell (de fato, algumas possuem boa base). Eu recomendo sempre aos alunos que leiam O Herói de Mil Faces e, depois, As Máscaras de Deus. A partir delas, tenho esperança de que possamos ler obras diferentes sobre mitos. Narrativas (como a Teogonia, de Hesíodo, ou o longo poema Mahabharata) ajudam a ampliar nossa visão dos mitos.
Tentação
A grande tentação dos especialistas em mito é a negação da história. Jesus passa a ficar ao lado de Krishna e de Osíris, e funções simbólicas ocupam o lugar da especificidade de cada cultura. Como ocorre na obra de Campbell, vemos similaridades universais em abundância, e a humanidade vira uma coisa mais homogênea. Talvez unir todos os homens em um único sistema seja a tentação mítica dos especialistas em mitos. Em ciências sociais, essa característica é chamada pela longa palavra de Fenomenologia. Em literatura, é chamada de Humanidade...
Conhecemos muito de todos os nossos valores ao examinar mitos de fundação, narrativas de origem das coisas e mitos morais. Não é possível estudar um grupo caso se descartem como bobagens mágicas seus mitos.
Nunca nos esqueçamos disto: bons leitores atraem presentes sublimes de Papai Noel. O bom velhinho generoso ajuda a construir o grande mito da infância feliz.
* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS