O ano era 2009. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tinha quatro anos de existência quando emitiu a primeira decisão que aposentou compulsoriamente um magistrado no País. O alvo da ação foi o ex-juiz Rivoldo Costa Sarmento Junior por determinar, na condição de plantonista, que a Eletrobras pagasse R$ 63 milhões a um portador de títulos públicos. O CNJ avaliou que a medida era injustificável. Passados 15 anos da sua punição, o aposentado recebe em média R$ 32 mil brutos por mês, com direito a décimo terceiro salário e até a um penduricalho que elevou para R$ 107 mil os seus vencimentos no mês de dezembro do ano passado. O ex-juiz diz que a sua aposentadoria compulsória “foi um castigo”.
Rivoldo recebeu no último mês de dezembro R$ 70 mil a título de Parcela Autônoma de Equivalência (PAE), um penduricalho que premia juízes e promotores por terem ingressado na carreira numa época específica. Como mostrou o Estadão, esse benefício foi criado por lei, em 1992, com o objetivo de equiparar as remunerações de autoridades dos Três Poderes.
“É difícil aquilatar se esse instituto (aposentadoria compulsória) é benéfico ou maléfico, porque o que se procura preservar é a segurança jurisdicional dos juízes. Quanto ao meu caso, para mim foi um castigo porque não foi comprovada nenhuma irregularidade na minha conduta. A aposentadoria não foi benéfica. Foi um castigo”, disse Rivoldo ao Estadão. “Há um movimento muito grande de política dentro dos tribunais, então eu preferi me confortar com a aposentadoria e seguir a vida”, completou o ex-juiz.
Assim como Rivoldo, outros 117 juízes foram aposentados compulsoriamente pelo CNJ ou por seus respectivos tribunais, desde 2006. Levantamento realizado pelo Estadão mostra que apenas o Conselho foi responsável pelo afastamento de 88 magistrados. Outros 30 tiveram punição definida por tribunais regionais ou estaduais.
A reportagem procurou os seis Tribunais Regionais Federais (TRFs), os 27 tribunais estaduais e do Distrito Federal (TJs), os 24 Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) e os três Tribunais de Justiça Militar (TJMs), pois também podem impor sanções a seus membros por meio de processos administrativos disciplinares (PADs). Apenas 13 das 60 Cortes demandadas retornaram com informações dentro do prazo estabelecido para a apuração.
As causas de aposentadoria vão desde emitir posicionamento político em período eleitoral a praticar assédio sexual, como ocorreu com um juiz do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) que fez investidas contra ao menos quatro jovens que trabalhavam em empresas terceirizadas. Há ainda casos de corrupção passiva, como o ocorrido com um juiz da cidade de Nossa Senhora de Nazaré (PI), que cobrou quantias em dinheiro à prefeita do município para dar decisões. Em 2023, houve um salto no número de magistrados aposentados pelo CNJ. Foram 13, diante de apenas dois no ano anterior e quatro em 2021.
Um magistrado brasileiro recebe em média R$ 37,2 mil, segundo painel de remuneração do Conselho Nacional de Justiça. Na Justiça Federal, por exemplo, a média salarial em março deste ano ficou em R$ 38,2 mil, enquanto na esfera estadual o vencimento básico médio chega a R$ 36,3 mil. Essas cifras fazem com que o gasto anual do Poder Judiciário com os 118 juízes e desembargados aposentados compulsoriamente equivalha a cerca de R$ 57 milhões. O montante pode ser ainda maior, já que o cálculo da aposentadoria forçada é feito sobre o tempo de contribuição e há casos de juízes que continuam recebendo “penduricalhos” como o primeiro punido pelo CNJ.
A aposentadoria compulsória é a pena mais “dura” que um magistrado pode sofrer. Quando este tipo de sanção é imposta, o condenado para de trabalhar, mas continua a receber salário proporcional pelo tempo de contribuição.
O argumento jurídico que sustenta essa prática é o de que os juízes, promotores e militares precisam de autonomia para exercer a função e, portanto, não podem agir com medo de serem penalizados com a perda da remuneração. Há ainda outras formas de punição, como censura, advertência e remoção compulsória (mudança de fórum ou comarca). A única forma de um juiz deixar de receber salário é em caso de condenação criminal.
“Determinadas carreiras recebem ou merecem receber prerrogativas para o exercício da função, mas isso acaba mal casando com uma tradição brasileira que eu chamo de ‘corporações de ofício’, que se protegem e procuram transformar prerrogativas em privilégios. Prerrogativas são questões constitucionalmente justificáveis e explicáveis. Privilégios, não”, afirma o professor de direito administrativo Álvaro Jorge, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “A aposentadoria compulsória me parece que não está no âmbito de uma prerrogativa justificável, mas de um privilégio”, completou.
Já a Associação Brasileira de Magistrados (AMB) avalia que a aposentadoria compulsória “não é um benefício do juiz, mas a contrapartida pelos pagamentos realizados ao regime de previdência ao longo do tempo de exercício da função”. Em nota à reportagem, a organização afirmou que, na “história recente do País”, magistrados foram aposentados compulsoriamente por discordarem do Poder vigente. De acordo com a AMB, “há, portanto, motivos históricos para a existência da aposentadoria compulsória com recebimento de proventos proporcionais”.
“Além disso, faz parte das prerrogativas da magistratura, que contribuem para a manutenção da independência judicial, pois garante aos magistrados e magistradas a prerrogativa de decidir com independência e imparcialidade, sem sofrer represálias, mesmo quando contrariam o poder vigente”, disse a AMB. “Como quaisquer cidadãos, juízes que cometem crimes graves devem responder perante o Poder Judiciário – e podem ser condenados, com a observância do devido processo legal”, finalizou.(Do Estado de SP)