As pesquisas que procuram constituir a historicidade de um suposto profeta da antiguidade chamado Jesus, que teria vivido na Palestina do século I, têm por objetivo investigar também como um judeu-palestino, com as características físicas e comportamentais dos homens daquela região naquela época, foi capaz de alterar os rumos do seu povo e de grande parte da Humanidade sem recorrer à violência. Se letrado ou iletrado, se camponês ou revolucionário, se avesso ou partidário à Roma, tudo é historicamente possível, e nenhuma resposta definitiva ainda existe e não haverá.
A tentativa de se constituir a historicidade de Jesus de Nazaré se dá no estudo do seu contexto social, cultural, religioso e político, com base em conceitos histórico-filosóficos específicos da época. E, sempre que possível, cotejados com fontes ditas não-cristãs provenientes da mesma época, vindas de outras partes do Oriente Médio e da Europa.
Quando me perguntam sobre o objeto histórico que pesquiso, geralmente busco demonstrar a diferença entre a busca do Jesus histórico e a do Jesus Cristo, o objeto de fé. Ou seja, tento separar no plano teórico o físico do metafísico.
A delimitação do objeto científico e suas características diversas é o primeiro estabelecimento que todo pesquisador deve seguir ao buscar dialogar com um público menos familiarizado com as tentativas de conjecturar quem ele tenha sido em sua humanidade.
Estudar Jesus requer um olhar interdisciplinar
O Jesus histórico é um objeto de análise que começou a receber maior atenção das Ciências Sociais a partir dos anos 1980. O referencial teórico dessas ciências o situa no espaço e no tempo, e além disso a busca pelo seu conhecimento conta com um arcabouço teórico literário e religioso muito rico, e uma metodologia consolidada. Estudar o Jesus de Nazaré requer, antes de mais nada, um olhar interdisciplinar.
Vale ressaltar que hoje vivemos a terceira onda de buscas pelo Jesus histórico, conhecida como Third Quest. Nela, busca-se compreender a figura de um Jesus que se comportava no contexto da sua época, na Palestino do século I.
Contudo, o quadro organizacional da proposta metodológica central da terceira busca poderá oscilar tendo em vista a percepção de distintos pesquisadores e estudiosos do objeto. A grande maioria dos pesquisadores deste século, segue pela divisão trina (as três etapas) da pesquisa histórica de Jesus.
Ao “ocupar” um lugar social, a busca pelo Jesus histórico, a fim de constituir um estudo que se aproxime do ambiente galileu precário da Palestina do século I, lança luz sobre vertentes que anteriormente não eram exploradas. Nas palavras do historiador André Chevitarese e do arqueólogo Pedro Paulo Funari, acerca das análises propostas pelo Seminário de Jesus, e interpretando uma leitura analítica do trabalho do historiador John Dominic Crossan, argumenta-se que “é possível observar que as atuais pesquisas em torno do Jesus histórico ampliaram consideravelmente as suas bases teórico-metodológicas, inserindo novas percepções advindas dos campos da Sociologia, Antropologia, História e Arqueologia”.
Desse modo, também pode-se destacar a pesquisa teórica e empírica das ciências sociais que muito enriquecem a pesquisa acadêmica e científica sobre o Jesus histórico, que almejam conjecturar seu contexto social, geográfico, político e cultural.
Estudar Jesus é entender a Palestina
Portanto, a perspectiva dessas ciências permite um olhar refinado do tecido social da vida judaica da época. Sendo assim, possibilita-se novas ferramentas de análise que tocam em vertentes características do campo. Por exemplo: as relações sociais, o lugar e a posição das mulheres na sociedade, a hierarquia social, o espaço social e político, o fator cultural e simbólico daquela sociedade e, sobretudo, fatores de caráter antropológico no estudo da família e parentescos do Jesus de Nazaré. É nesta etapa que se concentra o maior número de trabalhos sobre o Jesus histórico de onde partem esses novos focos de análise.
Pareceu-me que o momento atual da busca pelo Jesus histórico se assemelhe ao contexto liberal no qual Albert Schweitzer escreveu no século XX. Ou seja, “não há tarefa histórica que revele o verdadeiro interior de um homem como a de descrever uma vida de Jesus”. Se tal percepção predominava na mente crítica de Schweitzer naquele momento, pode-se afirmar que ela continua recorrente nos dias atuais.
O que é o Jesus histórico atualmente? Um objeto científico subjetificado que diz mais sobre o “teu” pesquisador do que a própria pesquisa empírica histórico-social, ou um Jesus histórico relegado apenas a questões religiosas?
A terceira etapa da pesquisa, a atual e demarcada a partir dos anos 1980, é uma etapa de maior confiança na busca pelo conhecimento do Jesus de Nazaré. E segundo nossa perspectiva, essa afirmativa é justificável em dois pontos importantes: o primeiro tendo em vista os documentos descobertos em Quran, que foram a “estaca” fincada em terreno científico que demarcou de fato a inserção de Jesus no seu próprio contexto judaico.
O segundo ponto se resume na quantidade de dados que foram possíveis de serem alcançados com a pesquisa interdisciplinar, que conta com referenciais antes inexplorados e que foram surgindo cada vez mais, e agora marcam de forma significativa a terceira busca.
Eu me refiro às contribuições das ciências sociais (principalmente da Antropologia Cultural e da Sociologia) que receberam maior ênfase e que conduziram grandes estudos, dentre eles os de John Dominic Crossan e John Piper Meier, sobre a temática do Jesus histórico.
Esses autores exploraram o tecido social da vida judaica na Palestina do século I a fim de conjecturar e observar de forma bastante particular o “mundo” terreno de Jesus de Nazaré para assim estabelecer tais aproximações no Jesus histórico.
Afirmamos que a terceira etapa da pesquisa pelo Jesus histórico é um momento interdisciplinar. Se fôssemos categorizar as disposições metodológicas desta, chegaríamos à conclusão de que “tudo” é criticado e explorado.
A atenção ao contexto sócio-histórico de seu tempo é um ponto chave para reafirmar a terceira etapa; a questão da vida precária na Baixa Galileia também aparece pouco explorada.
Inclusive, essa ênfase no contexto histórico e social tende a sempre impulsionar o pesquisador do sujeito histórico a elaborar um discurso social e político, uma vez que nesse recorte, o Jesus de Nazaré será retratado como um “revolucionário”, quiçá um profeta social.
Já a relação direta de Jesus com a sua gente, quer dizer, com o judaísmo, também é uma abordagem que provoca muita discussão. Inclusive, é a que mais aparece de forma explícita nos trabalhos da terceira etapa da pesquisa.
Tal enraizamento – o do Jesus de Nazaré e, supostamente, o do Jesus histórico no judaísmo antigo do século I – é sobremaneira utilizado como um drástico rompimento com a segunda etapa da pesquisa que pareceu buscar distanciar Jesus desse contexto.
Contudo, o que ficou para trás nessa discussão toda foi uma discussão sólida acerca da “real” imagem - ou talvez a mais adequada - que se possa conjecturar de Jesus.
Eu me refiro, nesse caso, a um retrato discursivo, que conjectura traços fenotípicos, a suposta face, talvez a tonalidade da pele, a estatura, ou seja, a aparência de um judeu característico do mediterrâneo da Palestina do século I.
Entende-se a dificuldade de se encontrar uma caracterização fenotípica adequada ao Jesus de Nazaré histórico. Todavia, entendendo Jesus como um arquétipo da modernidade, como apontou John Piper Meier, tudo é possível conjecturar.
E por que não agora, em época moderna, com todo o acervo bibliográfico interdisciplinar das ciências sociais, fornecer um retrato marginal (discursivo) do Jesus histórico?
Todavia, nos deparamos nessa literatura com uma não menção à questão étnica que envolvia a existência de um judeu qualquer, característico do século I na Palestina.
E nos questionamos: por que não? Ora, se a terceira busca pelo Jesus histórico alargou as possibilidades de pesquisa e reconstrução desse homem através de um corpo científico, por qual motivo a literatura recente sobre o tema não tem se aprofundado a ponto de delinear um perfil dele como um homem igualado em sentidos físicos a um homem semita do Oriente Médio?
Argumenta-se que a discussão a respeito da tonalidade de pele de Jesus de Nazaré não seria relevante. Porém, isso não quer dizer que ela não deva estar em pauta. Mais que isso: trazer elementos que provoquem reflexões concretas sobre a aparência física do símbolo maior da doutrina cristã poderia estimular uma revisita mais fundamentada à questão. A fim de questionar - e quem sabe reescrever - as narrativas tradicionais, colonizadas e eurocêntricas que quase sempre retratam este palestino do século 1 que provocou a ira de Roma como um homem de traços delicados, cabelos lisos e claros, e olhos azuis.
Nota do autor: O Jesus histórico não é o Cristo da Fé. E não se deve confundir a sua busca com estudos relacionados à história da teologia, nem mesmo à reconstituição do cristianismo primitivo.
*Hudson Silva Lourenço é pesquisador científico na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ).
**Esta reportagem foi originalmente publicada no site "The Conversation Brasil"