Passava das 10h quando quatro criminosos disfarçados de policiais civis saltaram de uma falsa viatura no estacionamento do supermercado Nacional, em Guaíba, Região Metropolitana de Porto Alegre (RS). Era 29 de dezembro do ano passado e, naquele momento, uma empresa de transporte de valores abastecia os caixas eletrônicos do estabelecimento com uma quantia milionária. Com fuzis e pistolas, os homens entraram no estabelecimento, reuniram os vigilantes, os desarmaram e anunciaram o assalto. Mais de R$ 4 milhões foram roubados. Duas semanas depois, a polícia apreendeu uma das armas usadas, abandonada pelo bando na fuga: um fuzil calibre 7,62 comprado legalmente por um atirador desportivo.
A Polícia Civil do Rio Grande do Sul rastreou a origem do armamento e descobriu que o homem foi cooptado pelos assaltantes para tirar o certificado de registro de Caçador, Atirador e Colecionador (CAC) junto ao Exército, comprar o fuzil e repassá-lo ao grupo. E o caso de Guaíba não é isolado: investigações policiais de quatro estados mostram a atuação de CACs no fornecimento de armas e munição para quadrilhas especializadas em roubos de grandes quantias — como ataques a agências bancárias e transportadoras de valores e assaltos com domínio de cidades de pequeno e médio portes, modalidade conhecida como “Novo Cangaço”.
O fuzil usado pelos criminosos no roubo à transportadora em Guaíba foi comprado pelo CAC por R$ 14 mil numa loja de armas, autorizada pelo Exército a vender o produto, em agosto de 2021. O dinheiro pertencia a uma facção criminosa, associada à quadrilha de assaltantes. Oito meses antes do crime, o homem — morador da cidade de Getúlio Vargas, no interior gaúcho — foi aliciado por um integrante da facção para virar CAC e fazer a compra. Como não tinha antecedentes criminais, ele conseguiu o certificado de registro. Pelo serviço, ganhou R$ 2 mil da quadrilha.
— O fuzil foi pego por ele na loja e, no mesmo dia, foi repassado aos criminosos. Detectamos que ele também comprou outras três pistolas para a mesma quadrilha, com o registro de atirador — diz o delegado João Paulo de Abreu, da 1ª Delegacia de Repressão a Roubos (1ª DR), responsável pela investigação do crime.
O CAC foi preso em fevereiro deste ano, mas atualmente responde em liberdade. Todos os demais assaltantes foram identificados e presos. No mesmo dia do roubo, a maior parte do dinheiro foi recuperada dentro de uma van abandonada pelos criminosos com problemas mecânicos. Do total roubado, somente R$ 82 mil reais não foram encontrados.
O número de armas e munição nas mãos dos CACs explodiu no Brasil nos últimos quatro anos, em decorrência de uma série de decretos do presidente Jair Bolsonaro que ampliou os direitos da categoria. O número de integrantes da categoria cresceu de 117 mil em 2018 para mais de 673 mil até junho de 2022, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Por decreto, o presidente aumentou o limite de armas e munição a integrantes da categoria. Atualmente, atiradores podem ter até 60 armas e comprar 180 mil por ano; antes o limite máximo era de 16 armas e 40 mil cartuchos. Por isso, o arsenal nas mãos da categoria passou de 350 mil armas em 2018 para mais de 1 milhão.
Para o policial federal Roberto Uchôa, que estuda políticas de controle de armas e é pesquisador associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a série de decretos do governo sobre armas beneficiou o crime organizado.
— Na festa das armas, o crime organizado é um dos convidados principais. Hoje, com a flexibilização das regras promovida pelo governo, existem diversas maneiras de armas compradas legalmente irem parar nas mãos de criminosos. As quadrilhas podem cooptar alguém sem antecedentes para se registrar como CAC e comprar armas, usar laranjas, usar brechas no controle para que seus próprios integrantes virem CACs e, por fim, ainda podem atacar transportadoras e lojas de armas. No mercado ilegal, um fuzil custa R$ 50 mil, ficou muito mais fácil buscar essa mesma arma três vezes mais barata no mercado interno, legal — explica Uchôa.
Outro crime que contou com a participação de um CAC foi o mega-assalto de Araçatuba, no interior de São Paulo, em agosto do ano passado. Na ocasião, um grupo de 30 criminosos atacou três agências bancárias e fizeram moradores e motoristas reféns. Segundo a investigação da Polícia Federal, o atirador certificado pelo Exército Emerson de Oliveira Silva “prestou apoio” à quadrilha: nos dias que antecederam o roubo, ele é acusado de abrigar parte da quadrilha e, após o crime, de vender um dos carros usados pelos assaltantes. Em fevereiro deste ano, Silva foi preso em flagrante após agentes federais encontrarem, em dois imóveis seus, um revólver calibre 38 e munição de calibres 5,56 e .50 — este último tipo é de uso proibido, capaz de perfurar a blindagem de um carro forte e foi empregada no assalto. Em agosto, o CAC foi condenado a cinco anos de prisão pela posse do armamento ilegal.
Munição ‘palmeirense’
Em SP, há um outro caso de CAC envolvido com quadrilhas de assaltos a bancos. Em dezembro de 2016, a Polícia Civil do estado deflagrou a Operação Galileia, contra uma quadrilha que fornecia armas e munição para roubos de cargas, bancos e transportadoras. Um dos principais alvos foi o colecionador e atirador Arnaldo Miranda dos Santos, que mantinha em sua casa uma fábrica clandestina de cartuchos, mesmo não tendo autorização do Exército para vender munição. Escutas feitas com autorização da Justiça flagraram Santos solicitando a um de seus fornecedores — um PM lotado no centro de armamento e munição da corporação — munição “verde” e “palmeirense”.
Em depoimento à Justiça, o delegado Edson Carlos Tavares, responsável pela investigação, afirmou que a “munição de ponta verde, segundo a especificação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), é aquela identificada como de furar blindagem”. Segundo o delegado, os cartuchos seriam usados “para ataque a carros fortes, a base de valores”. Em dezembro de 2020, Santos foi condenado a nove anos de prisão pelos crimes de associação criminosa e comércio ilegal de armas e munição.
A conexão entre CACs e quadrilhas especializadas em grandes roubos também foi comprovada em dois estados do Nordeste. Em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, o colecionador André Filipe Cardoso Lemos Santiago foi preso em flagrante quando negociava uma bazuca com uma quadrilha que usaria o armamento para explodir um banco, em agosto de 2018. O comprador do armamento, que também foi preso, era Charles Francisco Dantas Júnior, condenado a sete anos de prisão pelo roubo de R$ 35 mil de um capitão da PM que havia acabado de sacar a quantia, dois anos antes.
Já em Natal, em meio a uma investigação para combater uma quadrilha roubo a bancos e carros-fortes, a Divisão Especializada em Investigação e Combate ao Crime Organizado (Deicor) prendeu em flagrante o atirador Makson Felipe de Menezes Pereira, o “Playboy das Armas”. O CAC foi abordado por policiais em maio de 2021, no momento em que iria vender um fuzil 7,62 a um dos maiores traficantes de armas do Nordeste, Esterivar Ferreira de Lima, conhecido como Senhor das Armas. A arma estava dentro do carro blindado de Makson e foi apreendida. Segundo a investigação da Deicor, Lima é fornecedor de quadrilhas do “Novo Cangaço”.(Do Globo)