Uma das grandes hipóteses que organiza minha precária visão de mundo é a seguinte: o homo sapiens sobreviveu até aqui porque na imensa maior parte do tempo em que tem existido, o ambiente lhe tem sido hostil e limitante dos seus desejos, delírios e obsessões. Agora, somos como um louco que escapou do hospício.
A pré-história é infinitamente mais espessa do que a história. Dentro da história, a modernidade é um piscar de olhos, principalmente o século 21. Portanto, somos uma espécie pré-histórica perdida num ambiente que não é o seu.
É comum dizer que o que trouxe o homo sapiens da escuridão do baixo paleolítico até o nosso presente foi nossa capacidade técnica, imaginativa, criativa, cognitiva, linguística. Não acho que foi isso que aconteceu.
Acho que o que nos trouxe até aqui foi nossa incapacidade de controlar o ambiente à nossa volta, o fato incontestável de sermos suas vítimas constantes, sermos limitados pelo meio ambiente hostil ao longo de milênios –a imensa maior parte dele na pré-história.
Sem essa contenção, teríamos desaparecido porque o cérebro é um órgão que tende à entropia em meio aos seus delírios e desejos.
Ou seja, foi a "camisa de força" que o ambiente colocou em nossa mente doente, desvairada, egoísta, falastrona, cheia de mundos na cabeça que não existem, enfim, a ausência de técnica, ciência e racionalidade sistemática que nos manteve vivos. Tais características juntas podem pôr fim à história da adaptação do homo sapiens ao longo da seleção natural. Os riscos da IA são apenas a cereja do bolo nessa entropia da espécie.
Minha hipótese é que o progresso em larga escala é um surto. Mas não existe nenhuma possibilidade de voltarmos atrás. Vamos adiante, até implodir nossa própria espécie em micro-obsessões típicas de um pequeno animal que vê seu reflexo no espelho e enxerga um deus. São muitos os exemplos. Daremos dois.
Exemplo um. "A vida é feita de escolhas", nos dizem as psicólogas. A impossibilidade de fazer escolhas nos trouxe até aqui. A mania, o imperativo, a obsessão por fazer escolhas que, na verdade, nunca sabemos direito o que estamos escolhendo, nos leva a infinitos labirintos de delírios de onipotência que, na sua raiz, não passam de gestos de um animal inquieto.
O homo sapiens escolhe em meio à escuridão, mas a modernidade criou a ilusão da "luz racional da razão" como fundamento da escolha, quando, na verdade, escolhemos a partir de nossos afetos, traumas, ódios, paixões que tentamos travestir de argumento racionais.
Não que não existam, hoje, possibilidades de diferentes destinos, mas é justamente o fato de haver esses diferentes destinos que cria o caos do cotidiano e nos obriga a escolher em meio à cegueira das variáveis que nos atravessam e atravessam o mundo exterior que despenca sobre nós.
Muitas opções diante de um animal que evoluiu tendo quase absolutamente nenhuma opção gera esse constante mal-estar. Melhor que não houvesse nenhuma opção. Cada cabeça, uma sentença, um projeto de futuro para o mundo.
Exemplo dois. Em breve discutiremos o direito dos pets ao voto democrático. O departamento dos direitos dos animais do Ministério Público acatará a denúncia da associação dos profissionais de saúde mental dos animais de que a negação aos pets o direito de votar é uma limitação do estado de direito. Puro especismo.
Métodos desenvolvidos por especialistas de grandes marcas acadêmicas criarão uma cacofonia –científica, claro– de teorias de como acessar o que pensa um animal a fim de identificar suas preferências. Apenas cães e gatos ou outras espécies devem ser cidadãs?
O que quero que fique claro em minha hipótese é que a entropia sapiens não será grandiloquente do tipo destruir o meio ambiente ou causar uma guerra nuclear. A entropia virá de modo invisível, nos detalhes, nos contenciosos jurídicos, e implodirá esse mundo de escolhas, desejos, delírios e projetos.
Uma hora, os acordos e consensos se esgotarão. Assim como um grande império de super-heróis que se desmancha no ar. O homo sapiens é uma espécie psicótica.
*Por Luiz Felipe Pondé