O Exército gasta mais de R$ 20 milhões por ano com o pagamento de pensões para familiares de 238 "mortos fictícios", como são chamados os militares expulsos da Força por condenações no Judiciário.
A lista é composta por 38 oficiais e 200 praças que perderam o posto e a patente por terem cometido crimes ou infrações graves cujas penas somam mais de dois anos de reclusão. As pensões são pagas a 310 familiares.
É a primeira vez que os dados do Exército sobre os "mortos fictícios" são tornados públicos. A lista foi obtida por meio da Lei de Acesso à Informação pela Fiquem Sabendo, organização sem fins lucrativos especializada em transparência pública, e repassada à Folha.
A figura jurídica do "morto fictício" (ou "morto ficto", como também é chamado) foi criada para atender à Lei 3.765, de 1960. A legislação definiu que o militar expulso da Força não perde o direito à pensão militar já que, durante o tempo em que serviu, parte do salário era recolhida para custear o benefício.
Como o pagamento não pode ser feito diretamente aos militares condenados, eles passaram a ser considerados "mortos fictícios", e os familiares ganharam o direito de receber o salário do oficial ou praça.
Nove coronéis estão entre os "mortos fictícios" do Exército. Um deles, Ricardo Couto Luiz, foi preso em 2014 com 351 kg de maconha prensada em um fundo falso de um furgão no Rio de Janeiro.
Segundo a Polícia Federal, o coronel deixava sua farda pendurada num cabide no interior do veículo, mesmo já sendo militar reformado, para tentar inibir eventuais revistas policiais.
Ricardo Luiz foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 2015, e o processo transitou em julgado (quando não há mais possibilidade de recursos) em 2020. O STM (Superior Tribunal Militar) só confirmou a perda do posto e da patente em 2022.
Há três anos, a filha do coronel recebe mensalmente R$ 13,4 mil.
Um outro caso é o do coronel Paulo Roberto Pinheiro, que foi condenado por um esquema de fraudes em contratos do Hospital Militar de Área de Recife. Segundo o Ministério Público Militar, um grupo de oficiais abria processos de compras para o almoxarifado e combinavam com a empresa vencedora para não entregar os itens contratados.
Pinheiro teve a "morte fictícia" reconhecida em 2023 —e sua esposa passou a receber quase R$ 23 mil mensais como pensão.
"As Forças Armadas se mantêm como uma espécie de estamento privilegiado dentro do Estado brasileiro [...] que não se sujeita às mesmas normas que os outros funcionários públicos civis", avalia Lucas Pedretti, professor de história estudioso sobre a transição da ditadura militar para a democracia.
Pedretti argumenta que as Forças Armadas conseguiram manter privilégios no fim da ditadura que se perpetuaram. "Talvez seja a hora da sociedade brasileira ter clareza de que tem um lugar para onde a gente deve começar a fazer esse debate [corte de privilégios do funcionalismo]", completa.
As pensões fazem parte de um conjunto de benefícios que militares possuem no âmbito do SPSMFA (Sistema de Proteção Social dos Militares das Forças Armadas). Só em 2023, os gastos com pensões chegaram a R$ 25,7 bilhões.
A legislação que beneficia a carreira passou por diversas alterações. Em 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou medida provisória criando diversas restrições —entre elas, determinou que filhos de militares pudessem receber pensão até 21 anos (caso fosse estudante, até 24 anos) e não mais até a morte.
FHC, porém, permitiu que os militares pudessem permanecer com o direito da pensão vitalícia para filhos caso autorizassem um desconto extra de 1,5% na folha salarial.
O Congresso Nacional aprovou em 2019 uma lei que reestruturou as carreiras nas Forças Armadas. Nas pensões militares, as principais mudanças foram o aumento de 7,5% para 10,5% do desconto na folha de pagamento e a definição de que os beneficiários também terão de pagar a taxa enquanto receberem os valores.
A lei também estipulou que o beneficiário não receberá o salário completo do militar considerado "morto fictício" caso ele não tenha terminado o tempo mínimo de serviço. "Ou seja, o oficial [...] que perder posto e patente deixará aos seus beneficiários a pensão militar correspondente ao posto que possuía, com valor proporcional ao tempo de serviço".
Durante o processo de obtenção dos dados via Lei de Acesso à Informação, a Força se negou a enviar as informações detalhadas e chegou a apresentar números divergentes. O caso chegou até a CGU (Controladoria-Geral da União), que obrigou o Exército a enviar os dados completos por não haver previsão legal para o sigilo.
Em 2023, as demais Forças Armadas já haviam tornado públicas suas listas dos "mortos fictos". A Marinha e a Aeronáutica, somadas, pagam pensões a pouco mais de 300 familiares de militares expulsos.
A existência da figura jurídica do "morto fictício" ganhou atenção durante o governo Jair Bolsonaro (PL).
O major Ailton Barros era amigo próximo do ex-presidente. É investigado pela Polícia Federal por ter participado do esquema de falsificação da carteira de vacinação de Bolsonaro, Mauro Cid e familiares, além de ser alvo do inquérito sobre os planos golpistas após a vitória de Lula (PT) nas eleições de 2022.
Barros foi expulso do Exército após ser condenado pela Justiça Militar por uma série de investigações internas —em uma delas, foi investigado por atropelar um integrante da Polícia do Exército que tentou parar o seu carro em uma ocorrência de trânsito na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro.
A redução de despesas com pessoal das Forças Armadas voltou a ser debatida entre integrantes do governo e do TCU (Tribunal de Contas da União) nos últimos meses. O presidente da corte de contas, Bruno Dantas, foi quem levou a discussão a público em entrevista à Folha.
As defesas por uma revisão dos gastos das Forças Armadas, em especial com as pensões e inativos, gerou preocupação nas cúpulas militares, que decidiram manter vigilância contra eventuais tentativas de redução de benefícios da carreira.(Da Folha de SP)