Numa passagem no final de "Diários da Caserna: Dossiê Smart: A História que o Exército Quer Riscar", o personagem Battaglia, alter ego do autor –o coronel da reserva Rubens Pierrotti Jr.– relata qual foi sua inspiração para o livro, recém-lançado pela editora Labrador.
O autor, que hoje atua como advogado, acusa ex-colegas de farda de compactuarem com irregularidades na compra de um simulador de apoio de fogo da empresa espanhola Tecnobit, que custou € 13,98 milhões aos cofres públicos (cerca de R$ 32 milhões quando o contrato foi assinado, em 2010, quase R$ 83 milhões pelo câmbio atual).
O Exército e Mourão defendem o negócio e argumentam que ele trouxe economia para a corporação. O Ministério Público Militar arquivou as denúncias. Apesar de a área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União), numa investigação de mais de três anos, ter apontado diversas irregularidades no processo, o plenário da corte arquivou o caso em 2021.
O equipamento em questão é uma espécie de videogame gigante que simula, em realidade virtual, combates com emprego de artilharia e tem por objetivo economizar munição real. O processo iniciado em 2010 foi concluído em 2016, com a inauguração dos dois simuladores da Tecnobit adquiridos pelo Exército.
O equipamento foi reprovado oito vezes pelo corpo técnico do Exército. Mourão entrou com o processo já em curso e, pela versão de Pierrotti, foi o responsável por destravá-lo, ou seja, por concretizar a compra a despeito das reprovações da equipe técnica.
As denúncias sobre a compra do simulador vieram à tona em 2018, numa reportagem do jornal El País, que teve acesso a documentos do caso por meio de um dossiê apócrifo de 1.300 páginas enviado à plataforma BrasilLeaks. Na ocasião, Pierrotti foi entrevistado e corroborou as acusações do dossiê.
Além de acrescentar muitos detalhes ao que já havia relatado —relações nada republicanas entre generais, a empresa contratada e o lobista que intermediou o negócio, incluindo histórias de alcova e camaradagem da maçonaria, mordomias a militares brasileiros bancados pelos espanhóis e vice-versa etc—, "Diários da Caserna" traz novas acusações.
Conta, por exemplo, que, durante um encontro com Simão/Mourão na Base Aérea de Santa Maria (RS), o general justificou ao coronel Pierrotti/Battaglia ter destravado a compra do simulador num acordo informal com os espanhóis para evitar um processo por espionagem, pois um oficial do Exército brasileiro havia espionado a empresa espanhola.
Questionado especificamente sobre isso, o Exército não respondeu. Mourão disse que é "fake". Foi a única resposta assertiva do general, que não quis comentar sobre o livro. Em 2018, então candidato a vice, afirmou que Pierrotti era "ressentido", "descompensado com mania de perseguição" e que iria processá-lo. Não o processou.
O personagem do livro diz ter gravado o diálogo com o general na Base Aérea. "Eu sei de muita coisa que aconteceu no projeto, guardei muitas provas, documentos, áudios. Sem dúvida, eu tenho muita ‘munição’ para enfrentá-lo na Justiça", diz a certa altura. Indagado se possuiu tal arsenal, o coronel Pierrotti disse que sim.
Além de Mourão, o livro de Pierrotti aponta principalmente o general Marco Aurélio Vieira (Aureliano, no livro), ex-secretário de Esporte do governo Jair Bolsonaro (PL) que durou pouco mais de três meses no cargo, como responsável pela aquisição do simulador. Ele teria sido, conforme o coronel, o mentor do negócio.
O processo se desenrolou sob a gestão de dois comandantes do Exército, Enzo Peri e Eduardo Villas Bôas.(Do Estado de SP)