Fui vencido e reconheço. Capitulei. Diante de inimigo mais poderoso, a honra manda derrubar o rei no xadrez e reconhecer a derrota. É correto dizer “perdi” quando o inimigo é melhor e maior.
Quem é o vitorioso? Ele, o celular inteligente, o smartphone triunfante. Ainda na era primitiva de ter celular apenas para fazer ligações, eu tinha resistências. Cheguei a me irritar com os aparelhos em capas de couro e antena. Instituí um dia sem celular, quarta-feira, para não criar dependência. Eu falava mal das pessoas dependentes. Denunciei publicamente o vício enervante. Incitei revoltas. Fiz catilinárias públicas em palestras. Ah, minha vaidade tola me atirou contra moinhos digitais!
O inimigo percebeu. Ficou mais sedutor. Agora, eu poderia procurar dúvidas de datas ou trechos de livros. Ele estava navegando no oceano de informações ao comando dos meus dados? Insatisfeito, doutor Fausto? Calma, podemos convocar mais soldados para o cerco. Que tal resolver sua vida financeira no aparelho? Ter sua carteira de motorista lá e o documento do seu carro? E se colocássemos jogos, agendas, lanternas, despertadores, vídeos, câmeras e música: tudo em um mesmo lugar? Há alguma muralha ainda levantada? Suas passagens de avião estarão lá. Imprimir algo será similar a escrever com pena de ganso: antigo! Algum soldado ainda ousa resistir nas muralhas? Sua comida, suas compras, suas roupas, suas redes sociais, seus pagamentos com cartões: tudo ali, no aparelho. Pronto! Ele venceu sem piedade.
Sem seu smartphone, você terá fome, ficará isolado, uma pessoa sem acesso ao mundo, sem conseguir chegar aos lugares, sem companhia, sem voos e sem marcações de passos. Sem o celular, você é nada, grita Mefistófeles lá do Vale do Silício. Sem celular morrerão teatros e cinemas; você virará um Robinson Crusoé abandonado em uma ilha primitiva. Ele venceu completamente e em triunfo. É um general que desfila nas ruas da Roma Imperial, com o velho Leandro (ex-crítico dele) acorrentado à biga da vitória. O triunfo é exemplar e absoluto. Velhos lutam, empresários se dobram, crianças choram, adolescentes por ele vivem. Há pessoas que morrem para conseguir continuar respondendo coisas ao celular enquanto dirigem. Roubado, vira um vazio de luto, uma amnésia de dados, um desespero superior a quase tudo. Esquecido, todos voltam para buscá-lo. Há ladrões que fazem o roubo e pedem resgate, como se o aparelho fosse um ser vivo, um filho dileto em cativeiro. Uma vitória absoluta. Havia vida antes dele? Você tem esperança de lembrar aquele período?(Do estado de SP)
*Por Leandro Karnal