• Contos do Zé #33 – Pela eternidade, com sangue nas mãos

    527 Jornal A Bigorna 26/06/2024 21:20:00

    Conto

    Havia sangue em suas mãos e o velho Antenor não sabia o por quê.

    O alzheimer estava lhe matando aos poucos. Não o seu corpo, é claro, mas sua mente. Ele realmente esperava que sua alma – a parte dele que realmente importava – passasse incólume pelo processo degenerativo que consumia suas lembranças e conhecimento com velocidade assustadora.

    Antenor já não lembrava de coisas básicas como o nome de pessoas há muito conhecidas e nem sequer o do seu cachorro, a única outra alma com quem compartilhava seus últimos anos.

    Ele e Eleanor haviam tido filhos, mas ambos morreram num trágico acidente de carro. Sua amada esposa nunca mais se recuperou completamente depois daquilo.

    Apesar de tudo, eles estavam sempre ativos na comunidade através de Rotary e amavam um ao outro.

    Há três anos Lea – como Antenor chamava carinhosamente a Esposa – faleceu após lutar contra um câncer agressivo de pâncreas, que a botou de joelhos em seis semanas e a dominou em quatro meses. Apesar de tudo, ela jamais reclamou.

    Suas últimas palavras – disso Antenor jamais se esqueceria – foram: “Obrigado por compartilhar a vida comigo. Te espero onde quer que eu esteja indo. Para quem tem fé, a vida nunca tem fim”.

    De lá pra cá, Antenor foi praticamente morrendo devagar, antes consumido pelo luto. Depois, não que tenha superado a morte da Esposa, mas o alzheimer se sobrepôs e – talvez num gesto misericordioso – foi embaçando suas memórias. Tanto as boas quanto as ruins.

    Mas, se era verdade que a tecnologia ajudava quem sofria de perda de memória – ele tinha um alarme no celular, que despertava a cada oito horas para lhe lembrar de dar comida para Chip, seu cão – para outras coisas não havia solução.

    O que era todo aquele sangue em suas mãos? Não era pouco para ser de pernilongo, nem tanto para ser de gente ou de um bicho grande, parecia.

    E, de mais a mais, não havia ninguém ali no Rancho dos Bachhuber. Aliás, apesar de “Bachhuber” ser o sobrenome de Antenor, também combinava perfeitamente com a propriedade, uma vez que em alemão, aquela palavra difícil aos brasileiros, significa  “casa à beira do riacho”, exatamente como a deles.

    Será que o sangue em suas mãos era das entranhas de um peixe que ele não se lembrava de ter pescado? Olhou o tanque e não viu vestígio qualquer de peixe. Isso sem contar que suas tralhas de pesca estavam guardadas.

    Por um breve momento, chegou a pensar em Chip. Será que ele teria machucado – ainda que involuntariamente – seu cão? Se assim fosse, onde quer que estivesse, Eleanor jamais o perdoaria. Ele não se perdoaria.

    Mas Chip estava bem e querendo lamber o sangue de suas mãos, que já começava a secar.

    Mas então, por que havia sangue em suas mãos? Será que era dele? Acreditava que não, pois não sentia dor e nem via sinal de machucado nelas.

    Percebendo que não descobriria tão cedo o motivo de suas mãos estarem naquele estado, decidiu lavá-las antes que todo aquele sangue secasse e ficasse bem mais difícil de sair.

    Quando se dirigiu até o banheiro, imediatamente compreendeu o que havia acontecido: Ele havia pegado a Luger que um dia fora de seu Avô, um Oficial do Exército Nazista que lutou na Segunda Guerra Mundial, e tirou a própria vida.

    O sangue em suas mãos era, na verdade, seu próprio sangue, que jorrou aos montes quando o projétil penetrou em seus miolos. Havia um rastro de massa encefálica no azulejo do banheiro e o projétil acabou por estilhaçar o espelho em que, por tantas vezes Eleanor havia se arrumado.

    O que Antenor Bachhuber não sabia, era que tirar a própria vida o havia condenado a permanecer nas mesmas condições e local em que estava. Pela eternidade. Ele jamais veria sua amada Esposa novamente.

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