Velórios são eventos tristes, você sabe. Metade das pessoas que estão ali são xeretas, gente que não conheceu o morto ou sequer seus familiares. Estão ali exclusivamente pelo “espetáculo”, para participarem do último ato da vida carnal de alguém. Acho que sentem prazer nisso. É, pois é.
Da metade que sobra, um terço está ali por obrigação devido a proximidade que tiveram com o agora cadáver ou com seus parentes. O outro terço, para comemorar o fato de você ter morrido e, finalmente, o terço final se faz presente realmente sentindo dores lancinantes na alma e chorando sua partida.
É para esse seleto grupo que poetas e artistas em geral, compõem seus trabalhos relacionados ao assunto.
De todo modo, velório é um negócio triste, porque tem muita gente sendo hipócrita, e meia dúzia sofrendo muito mesmo.
Agora que estou do lado de cá, consigo ver tudo isso com muita clareza. Nós, os populares fantasmas, não conseguimos fazer muitas coisas que os encarnados conseguem. Nós não bebemos, comemos, abraçamos, sentamos ou deitamos, por exemplo. Ah, e a maioria das pessoas não nos enxerga também.
Não é tão ruim quanto parece, a gente acostuma com o passar da eternidade.
Por outro lado, adquirimos alguns dons quando passamos para esse lado. Vemos através de paredes e das roupas, sabemos exatamente o que os outros estão pensando e podemos nos tele transportar.
De novo, não é tão ruim quanto parece. A gente se acostuma com o tempo. Mas no início é chocante. Principalmente a parte de saber o que as pessoas realmente pensam.
Naturalmente, não foi agradável ver os “balangandãs” de todos os que foram ao meu velório, mas até que foi ok. O ruim mesmo foi saber o que cada um pensava sobre mim.
Minha mãe Laura, por exemplo, apesar de me amar profundamente, achava que eu era um fracassado. Não ter casado e feito filhos foi fatal pra ela.
Meu tio Joelmir, que era muito ligado a mim, pois praticamente substituiu meu pai que faleceu quando eu ainda estava na barriga da minha mãe, achava que eu era gay.
Eu sou, mas nunca consegui contar isso pra ninguém. Preconceito. Você sabe como é difícil viver ao nosso próprio modo nos dias atuais... A sociedade julga demais o próximo, e de menos a si mesma.
Do meu trabalho, minha colega de sala, Noemia, só conseguia se arrepender de não ter me convidado pra sair e pensava em pagar pra minha mãe, os R$ 527,00 que havia emprestado de mim dois meses antes para quitar a cirurgia de emergência do Jimmy, a sua tartaruga de estimação.
Meu chefe, Sr. Oliveira, estava aliviado. Ele precisava demitir alguém para economizar e eu havia “resolvido” seu problema.
Marília, minha boa vizinha, estava angustiada porque meu enterro estava demorando muito e ela precisava fazer o almoço para o marido, Gonçalves, que lhe batia por qualquer motivo, inclusive por atrasar as refeições.
Meus priminhos, Enzo e Arthur, que estudavam juntos, só pensavam na musiquinha que estavam aprendendo na escolinha, para a apresentação de Páscoa: “...De olhos vermelhos, de pelo branquinho, orelhas bem grandes, eu sou um coelhinho. Sou muito assustado, porém sou guloso. Por uma cenoura, já fico manhoso. Eu pulo pra frente, eu pulo pra trás, dou mil cambalhotas, sou forte demais...”
Bem legal. Eu não conhecia essa. Quando criança, eu só cantava aquela do “um ovo, dois ovos, três ovos assim...”
Uma coisa interessante era o pensamento da minha afilhada, que tinha autismo. Isadora pensava num cavalo com crinas de purpurina multicoloridas que pastava num campo de algodão doce. Ela também queria, frequentemente, ir pra casa e simplesmente seguir com sua rotina em paz.
Isso só prova que Eugen Bleuler, autor da Teoria do Pensamento Autista, estava correto ao apontar que os autistas têm pensamentos característicos de atividades internas não controladas por condições externas...
Se você tiver um coração batendo no peito, provavelmente está com pena de mim agora, porque estou morto, apesar de ter só 47 anos. Realmente, aquele infarto me pegou de surpresa.
Mas acontece que não estou morto. Pelo contrário, me sinto mais vivo do que nunca. Agora eu posso ser o que sou. Agora, eu estou vivo de verdade.
Como diria Santo Agostinho, em “a morte não é nada”, uma bela elegia em forma de poema, “... Eu somente passei para o outro lado do Caminho (..) Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, eu continuarei sendo. (...) Eu não estou longe, apenas estou do outro lado do Caminho”.
Qual é o meu nome? Não importa, agora eu sou etéreo. Sou a eternidade.