Se a ciência nos dá algo, é a possibilidade de ter um ponto de partida para a discussão. É basicamente isso que os dados fazem: mostram uma realidade em uma linguagem compartilhada. Em troca, a ciência nos pede que esses dados sejam reproduzidos. Qualquer equipe de pesquisa que realize o mesmo processo, em qualquer lugar e em qualquer momento obterá o mesmo resultado. Esse aspecto de reprodutibilidade é fundamental para que a discussão seja clara e permita avançar no problema. A discussão é, portanto, sobre a interpretação desses dados, sobre o que esse número significa. Mas o ponto de partida deve ser reprodutível e o método compartilhado. A evidência científica se origina deste contexto.
À medida que a codificação do genoma humano avançou, foram criadas grandes expectativas sobre finalmente encontrar os genes para esquizofrenia, depressão e outras doenças mentais. Esperava-se que esses progressos levassem a melhorias no diagnóstico e tratamento, em geral, a uma melhora na qualidade de vida dos pacientes e familiares. Infelizmente, as expectativas não foram atendidas, e não foi por falta de iniciativa. Consórcios de pesquisa foram formados e grandes esforços foram feitos para superar limites metodológicos e técnicos, inimagináveis há alguns anos, mas os dados indicavam outra realidade. Até o momento, eles nos mostram que o aparecimento de uma doença mental não pode ser explicado apenas pela presença de certas variantes genéticas, algo mais deve ser adicionado.
Estamos no campo dos fatores de risco em saúde mental, e o leque de opções potenciais é ainda mais amplo do que aquele enfrentado por equipes de pesquisa científica em bases genéticas. Potencialmente, qualquer situação, elemento, relacionamento ou contexto que ocorra ao longo da vida de uma pessoa é plausível de ser incluído como um fator que pode estar envolvido em mudanças de humor, níveis de ansiedade ou até mesmo na interpretação da realidade. Além disso, esses fatores, ao contrário do perfil genético, são modificados ao longo da vida, à medida que a pessoa cresce, estabelece novos relacionamentos, visita novos lugares, estuda ou muda de emprego. Há quem jogue a toalha diante dessa imensidão por considerá-la incompreensível, mas há aqueles, com base em dados que conhecemos há muito tempo, que aceitam o desafio.
Há anos, mesmo antes da descoberta do genoma humano, existem dados sobre o impacto de algumas experiências de vida na saúde mental das pessoas. Não estou me referindo a alguma experiência pessoal, que a maioria de nós tem – problemas no casal, mudança de emprego. Refiro-me a dados científicos de estudos baseados primeiro em alguns grupos e, mais recentemente, em populações, que mostram uma clara relação entre doença e exposição a determinadas situações da vida. O exemplo mais claro, e com mais evidências, é o de sofrer abuso na infância. Essa experiência aumenta de duas a quatro vezes o risco de ter sintomas de psicose e depressão na vida adulta. Existem outros fatores de risco com evidências científicas, como traumas, estresse crônico. Mas o principal é o abuso.
Então, vamos imaginar uma pessoa adulta, com cerca de 45 anos, com depressão severa. Vamos imaginar, cara, por que não? Esse homem está em tratamento com profissionais de saúde mental e faz parte de uma comunidade cujo funcionamento é regido por políticas e ações públicas. Com os dados que temos hoje, espera-se que os responsáveis por seu tratamento se interessem por sua história durante a infância e saibam se ele é ou não sobrevivente de abuso. As chances são muito maiores do que para outros homens de 45 anos que não têm depressão, então a pergunta é mais do que justificada. Não será uma tarefa fácil, considerando o estigma que cerca a saúde mental e mais ainda o abuso infantil. Mas a equipe de profissionais está bem treinada para enfrentar tarefas que não são fáceis.
Ao nível das políticas e ações públicas, o que se espera é que aqueles que têm a gestão da saúde nas mãos unam seus esforços com aqueles que atuam nas esferas social e judicial para evitar que novos abusos ocorram. Porque, embora sofrer abuso na infância não decrete doença mental e nem todas as pessoas com doença mental tenham sofrido abuso, erradicar o abuso na infância é provavelmente, hoje, a medida de prevenção mais poderosa e mais precisa que pode ser executada. Se olharmos do ponto de vista da comunidade e da população, prevenir o abuso durante a infância pode significar uma redução de até 50% no predomínio de doenças mentais.
Para que esse tipo de política – clínica e pública – se transforme em ações reais, é preciso compreender uma ideia fundamental: as doenças mentais podem ser prevenidas. Os dados nos dizem que há um fator muito claro que aumenta o risco de ter uma doença mental. Por pura lógica, eliminar esse fator reduzirá o risco. Sem dúvida, mais ações, baseadas em evidências, serão necessárias para acelerar um processo focado na redução do sofrimento mental em todas as pessoas. Sem dúvida, existem outros fatores que podem modificar essa relação, como características pessoais ou apoio social. O risco implica probabilidade e, portanto, acaso, não destino. O risco também implica que o controle que temos ao longo de nossas vidas não está completamente sob nosso controle. Mas nossa capacidade de reconhecer nossas próprias vulnerabilidades e limitações é, então, buscar respostas para elas.
Um argumento comum é que esses eventos adversos são raros e que as ações coletivas de prevenção beneficiarão apenas uma minoria. Se assim for, a prevenção não terá o efeito que esperamos – redução significativa na prevalência de doenças mentais – e, portanto, não vale a pena. Infelizmente, o abuso infantil é mais comum do que ousamos admitir. Não se trata de falta de dados, ou de números baixos. É hora de questionar o papel do destino e o caráter imutável da doença mental, de reconhecer o alcance limitado dos genes e da determinação, de iniciar ações coletivas claras. A probabilidade de sucesso está do nosso lado.(Do Globo)