• A vida feliz se dá em uma dimensão limitada de nossas capacidades

    374 Jornal A Bigorna 07/05/2023 06:00:00

    Cassandra é uma figura mítica grega. Se existiu ou não, nada se pode dizer. Filha do rei de Troia Príamo e da rainha Hécuba, portanto, irmã de Hector e Páris —aquele que roubou Helena de Esparta e, supostamente, teria causado a guerra—, mais tarde, dada como paga de guerra ao rei dos gregos, Agamemnon, segue para Argos como sua escrava sexual. Lá, encontra a morte porque prevê só tragédias. O verdadeiro profeta só vê a infelicidade. Por quê?

    Eurípedes fala dela nas suas "Troianas" e Ésquilo na sua "Agamemnon", primeira parte da trilogia "Oresteia".

    Narrativas mitológicas nos dão versões distintas —como sempre nos mitos ancestrais— mas, ela sempre aparece como a mulher mais bonita de Troia, desejada pelo deus Apolo, quem dá a ela o dom da previsão do futuro em troca dela lhe prestar favores sexuais. Dado o dom, ela recusa a barganha. Apolo, em represália, retira dela o dom de persuadir as pessoas do que vê no futuro.

    Por exemplo, ela desesperadamente tenta convencer seus concidadãos a não aceitar o presente dos gregos, o famoso cavalo, que determinará a queda de Troia.

    Christa Wolf, crítica literária e ficcionista marxista e feminista, escreverá um livro publicado no Brasil em 2007, sobre Cassandra —cujo título é o nome da profetisa grega—, vinculando sua história ao patriarcalismo e a opressão —não podia ser outra coisa, sendo ela feminista.

    O que sempre me impressionou nessa figura —e o que faz dela original e ao mesmo tempo da mesma linhagem dos profetas hebreus— é a maldição que significa você de fato ser capaz de ver o futuro. Mas, o que é de fato esse "futuro"?

    Original porque, normalmente, se entende que um profeta, ou um vidente, seria alguém que é capaz de prever os números da sena, morte de famosos, acidentes naturais. E ninguém nunca acerta nada de nada.

    Há algo de diferente nesses profetas e profetisas antigos. Os videntes de hoje são banais como o Instagram, falam para uma plateia, em grande parte, de bobos.

    Nelson Rodrigues costumava dizer que o profeta é o único que enxerga o óbvio. Não se trata de enxergar o futuro como numa bola de cristal, mas sim, de perceber as consequências que se seguem aos atos humanos desde sempre, e que, como sempre, ninguém quer enxergar. O óbvio aqui é ver como o comportamento humano se repete desde priscas eras.

    O filósofo judeu polonês A. I. Heschel na sua primorosa obra "Os Profetas", sem tradução em português, na qual ele faz, nas suas palavras, uma fenomenologia da consciência profética, afirma que o profeta hebreu é aquele que sofre o páthos de Deus ao ver o mundo e a história, a partir do ponto de vista de Deus —ou seja, enxerga as coisas no seu desenrolar pleno no tempo.

    Tanto Cassandra quanto Jeremias —aquele que se senta sozinho por ter a mão de Deus sobre sua cabeça—, e outros profetas hebreus, sofrem muito por conta dessa visitação do poder que normalmente pertence só aos deuses.

    Cassandra sabe que morrerá quando chegar a Argos, sabe que ali se passará mortes dentro da família, mortes estas que terão como algozes e vítimas pai, esposa, mãe e filho —a filha, Ifigênia, já tinha sido oferecida em sacrifício pelo pai Agamemnon em troca de vento para ir até Troia.

    Os Atreus —família de Agamemnon— tem uma ancestralidade assassina, um miasma, como se diz em grego, uma espécie de pecado que se espraia pelos descendentes.

    A ideia de que uma família arrasta consigo as tragédias passadas —o miasma referido acima— é muito estranha para nós modernos, que cremos que nos reinventamos a cada novo vídeo do YouTube que vemos. Eu, seguindo Freud, acredito no miasma.

    Os profetas hebreus não são mais felizes por saberem do "futuro", ninguém de fato o seria nessa condição. A vida feliz se dá numa dimensão limitada de capacidades, não na condição de ser o flagelo dos deuses, aquele que, quer seja homem, quer seja mulher, carrega sobre si uma visão renegada pelos seus contemporâneos. Essa condição, muitas vezes referida como um dom, é, na verdade, uma maldição.

    *Por Luiz Felipe Pondé

     

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