• A modernidade tosse

    6724 Jornal A Bigorna 18/01/2023 07:00:00

    Não é possível existir sem ser incomodado e sem incomodar os outros. Da mesma forma, trilha um caminho tenso quem decide manifestar tudo o que altera sua paz e agride seus valores.

    Ao meu lado, no avião, alguém tosse, sem máscara e sem qualquer proteção. Mundo pós-pandêmico... Será? Posso calar-me, como fiz, em mais de três horas, de São Paulo a Belém, vendo a expectoração úmida e forte da pessoa ao meu lado, ou posso pedir que coloque uma máscara, adquira um lenço e evite voar quando estiver encarnando a Dama das Camélias tísica? Devemos aguentar o incômodo calados ou devemos arriscar uma discussão?

    As pessoas falam (muito) no cinema e parecem estar assistindo a um filme na sala das suas casas. Os que possuem mochilas às costas movem-se no transporte público sem considerarem a situação de “dromedários temporários” com corcova beligerante. Há quem escute música, ou veja vídeos no celular, indiferentemente à maravilha do fone de ouvido, descoberta extraordinária, que tem até opções muito econômicas para fácil aquisição. Um mundo de gente isolada nas suas telas. Sumiu a distinção do público e do privado, e todos deslizam pela cidade como se fossem uma espécie de Robinson Crusoé em ilha deserta.

    Quem notou a escolha entre o incômodo e o outro incômodo, entre suportar em silêncio ou tentar advertir, foi o próprio Hamlet, no seu monólogo mais famoso. Ele perguntou (ato 3, cena 1): “Pode ser mais nobre suportar as flechadas da fortuna ou enfrentar tudo?”. Se ele, príncipe bem-nascido, estava atormentado com a dúvida entre tolerar calado ou agir, imaginemos nós, mortais sem segurança e diluídos no mar de gente?

    Posso estar errado, generalizando, porém vejo que há sociedades em que a reclamação é mais fácil. Exemplo? Espanhóis e alemães, habitualmente, são diretos em dizer o que os incomoda. Sou brasileiro e sei que nossa estrutura de linguagem é cheia de sinuosidades, para evitar atrito direto. Falar “brasileiro”, sem sotaque, é aprender a matizar o não com mil voltas. A negativa, em Madri ou Berlim, é o caminho mais curto entre dois pontos. No Brasil, a estrada vicinal é a preferida.

    Seria melhor ser mais direto, expressando com clareza que alguém está ultrapassando um limite civilizacional? Nunca descobri a resposta adequada.

    Meu vizinho acometido de tosse forte continua manifestando ao mundo a força dos seus brônquios obstruídos. A arte da vida é tentar focar no que vale a pena. O espaço privado? Faleceu há alguns anos e repousa no campo santo da modernidade líquida. Esperança de ressurreição?

    *Por Leandro Karnal

    OUTRAS NOTÍCIAS

    veja também