• A face de tudo

    410 Jornal A Bigorna 18/09/2022 07:50:00

    Vemos formas familiares em nuvens no céu. A borra do café poderia indicar o futuro. Profissionais da área do comportamento identificam algumas características das pessoas a partir da leitura de manchas: o teste de Rorschach. De forma poética, aleatória, delirante ou científica, damos sentido ao que percebemos.

    Vamos aprofundar. Algumas imagens enviadas do planeta Marte foram lidas como rostos. Identificar faces em tudo tem até nome na língua portuguesa: pareidolia. É um fenômeno psicológico. Procuramos formas prévias que facilitem o funcionamento da mente. Gostamos da repetição de padrões e somos pródigos em encontrar nossas referências em tudo. Pronto: agora você sabe que sofre, como todo ser humano, de pareidolia.

    Exemplo? No Hemisfério Norte do planeta Marte, há uma região chamada de Cydonia Mensae. Quando a sonda da Nasa fez fotos da área, em 1976, apareceu um rosto nítido. Era a evidência de uma civilização marciana. Mais tarde, com maior nitidez, vimos que as interpretações eram um caso de pareidolia.

    Em seu texto mais difundido, O Existencialismo É um Humanismo, Jean-Paul Sartre adverte: somos nós que interpretamos os sinais a partir de desejos e de questões prévias. Sofremos de uma pareidolia crônica.

    As profecias são, sempre, confirmatórias de si mesmas. Busco, no futuro, algo que comprove o passado. O exercício mais bizarro são as centúrias de Nostradamus. Textos fechados, sem sentido lógico e abertos à subjetividade. De repente, zás, surge um fato que poderia ser a profecia. Pronto, repete-se a pareidolia permanente na busca de uma face possível a ser identificada.

    Profecias são como nuvens: as formas são determinadas pelo observador e variam de acordo com seu repertório, alcoolização, equilíbrio mental ou uso de cannabis. Detestamos o vazio de sentidos e de formas. Amamos ver rostos, sequências lógicas, profecias e coisas anunciadas. Gostamos tanto que as criamos.

    Faço reflexões sobre a construção daquilo que chamamos, em história, de teleologia. A tendência é forte: criamos um sentido prévio para os acontecimentos, um lugar de destino, uma necessidade insuperável de apontar para um vetor lógico no emaranhado aleatório dos fatos.

    Os exemplos ocorrem de forma natural ao estudar processos históricos. Os gregos foram fazendo reformas que conduziram à democracia: Sólon e Clístenes, por exemplo. Como eu sei que haverá uma democracia à época de Péricles, vou buscando a lógica que conduziu ao voto dos homens filhos de pais e mães atenienses. Rejeito as outras coisas, pois foco no rosto com sentido: a face democrática. É uma pareidolia do voto.

    Assim também vou reler o movimento de 1904-1905, na Rússia, com prenúncio da Revolução de 1917. As batalhas de El Alamein ou Stalingrado são grandes viradas na Segunda Guerra, a favor dos Aliados. Reforço a teleologia porque sei que a Alemanha nazista foi derrotada em 1945. Vou formando o rosto marciano (que eu sei) que ocorrerá no futuro. A frase do primeiro-ministro Churchill sobre a batalha no Egito mostra uma sabedoria que só podemos achar correta porque temos conhecimento de que a guerra levou à vitória dos Aliados: “Este não é o fim, não é nem o começo do fim, mas é, talvez, o fim do começo”. Aqui se misturam pareidolia e teleologia.

    Gostamos de dar sentido às coisas. O vazio e o aleatório enchem a alma humana de pânico. Amamos profecias, pois elas parecem indicar que, em algum lugar, existe um roteiro traçado e prévio. Talvez temamos a liberdade e o caos mais do que um sentido fixo e imutável. Se não escolhi, e as coisas aconteceram como deveria ser, posso reconhecer os rostos de Marte e da História. Tudo estava escrito, maktub universal, fatalismo consolador.

    Pior: antes se estudava história porque ela permitira profetizar coisas. Haveria um sentido moral (defendido pelo romano Cícero), uma série de previsibilidades afirmadas pelo positivismo de Comte) ou poderíamos antecipar a lógica histórica e mudá-la: marxismo. O romano, o francês e o alemão ficariam abismados como os fatos superam nossa capacidade de estabelecer lógica ou leis imutáveis. Esperneie no túmulo em Paris o criador do Positivismo; em Londres a tumba de Marx: as leis “imutáveis” continuam dependendo de interpretação permanente. Sim: situação de miséria extrema, combinada com teorias de mudança social mais líderes revolucionários, e um estopim imediato costumam se fundir em movimentos de derrubada de um governo ou até de uma revolução. Porém, a equação não é exata ou previsível.

    Cada vez mais, os vivos governam os mortos, dizia o pai do Positivismo na França. O problema é o acesso à mediunidade, porque os mortos falam e devem ser interpretados por seres com sangue quente cheios de sentimentos variados. Os mortos governam sim, porém os súditos governados, os vivos, são inquietos e infiéis. Diferentemente dos que jazem em tumbas, os que andam sobre a terra são marcados pela interpretação das ordens e exemplos dos falecidos. Sim, tudo é previsível, mas é uma pena que ninguém consiga ler sem colocar seu universo sobre as profecias. A água é pura, os canos estão sujos. Temos esperança, apenas não sabemos se o futuro é bom. Para lidar com o medo, profetizamos rostos.

    *Por Leandro Karnal

     

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