• Autobiografia

    2012 Jornal A Bigorna 14/07/2024 11:00:00

    Poesia

    Onde eu nasci

    há mais terra que céu.

    Tanto leito é uma bênção

    para mortos e sonhadores.

    E de tão pouco ser o céu

    nasce o sol

    em gretas nos nossos pés

    e os corações se apertam

    quando remoinhos de poeira

    se elevam nos telhados.

    As mães

    espanam o teto

    e poeiras de astros

    cobrem o soalho.

    De tão raso o firmamento,

    a chuva tropeça nas copas

    enquanto nuvens

    se engravidam de rios.

    Com tanta escassez de céu

    não há encosto

    nem para a mais minguante lua

    e os meninos,

    na ponta dos dedos,

    ascendem estrelas.

    Pois,

    nessa terra

    que é tanta para tão pouco céu,

    calhou-me a mim ser ave.

    Pequenas que são,

    as minhas asas parecem-me enormes.

    Envergando,

    escondo-as dos olhares vizinhos.

    Nas minhas costas

    pesam

    versos e plumas.

    Voarei,

    um dia,

    sem saber

    se é de terra ou de céu

    a pegada do voo que sonhei.

     

    Mia Couto, in "Vagas e lumes".

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