Uma análise inédita feita a partir dos resultados de um inquérito nacional e de um teste da OMS (Organização Mundial da Saúde) mostra que 6 milhões de brasileiros, ou 4% da população adulta, têm um padrão que indica consumo perigoso de bebidas alcoólicas, com risco de dependência.
As maiores prevalências desse risco foram encontradas entre os homens (6,6% contra 1,7% entre as mulheres), pessoas entre 45 e 54 anos (6,9%), com 9 a 11 anos de estudo (5%), residentes das regiões Centro-Oeste e Norte (6,8%) e pretos e pardos (4,7%).
Os dados foram extraídos do Covitel (Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia), que ouviu 9.000 brasileiros de janeiro a abril de 2023 sobre vários fatores de risco para doenças crônicas, entre os quais o consumo de álcool.
Na análise foram avaliados três aspectos: episódio de consumo abusivo, frequência semanal de consumo e risco ou de indício de dependência. Para esse último item, os pesquisadores aplicaram um instrumento de avaliação da OMS chamado Audit (teste de identificação de distúrbios no consumo do álcool).
Pouco mais de um quinto da população adulta (22%) relata consumo abusivo de álcool (a partir de quatro doses em uma mesma ocasião para mulheres e a partir de cinco doses para homens) nos 30 dias anteriores à entrevista para a pesquisa.
As maiores prevalências desse consumo abusivo foram encontradas nos homens (28,9%), nas pessoas de 18 a 24 anos (32,6%), na população de maior escolaridade (26,5%) —com mais de 12 anos de estudo— e nos moradores da região Sudeste (23,7%).
Para Luciana Sardinha, gerente sênior da área de doenças crônicas não transmissíveis da Vital Strategies no Brasil, um dos achados mais preocupantes da análise é o fato de os jovens entre 18 e 24 anos terem consumo abusivo e risco de dependência muito acima das pessoas com 65 anos ou mais —4,8% contra 0,7%.
"Daqui a 10, 15 anos, esse jovem estará no auge do seu momento de trabalho, da sua vida produtiva, e já está com esse consumo de risco", diz ela. Não é possível comparar esse comportamento com pesquisas anteriores porque é a primeira vez que o Audit é aplicado de forma completa e para uma amostra representativa de toda a população.
Segundo Fernando Wehrmeister, professor associado da UFPel, outras pesquisas têm mostrado que os jovens tendem a beber menos durante a semana, mas quando bebem, nos finais de semana, exageram.
Um terço (33,2%) entre 18 e 24 anos relatou não se lembrar do que aconteceu após uma bebedeira pelo menos uma vez no último ano. Na população em geral, o índice foi de 21,7% (13,8 milhões). Desses, 2,6% se sentem assim todos os dias e 9,2%, pelo menos uma vez por mês.
Reunião do AA (Alcoólicos Anônimos): depoimentos, conselhos e apoio
"Há uma série de coisas embutidas nesse ‘não lembrar do que fez por conta da bebida’. Tem a questão da violência, das doenças sexualmente transmissíveis, do beber e dirigir, coisas muito sérias", alerta Sardinha.
Os "apagamentos" são mencionados com frequência na reunião do AA e eram a grande preocupação de Lívia (nome fictício). "Comecei a beber na faculdade. Depois, terminava o expediente e ia tomar uma cerveja. Não sabia que a doença é progressiva", compartilha.
"Nos últimos anos, eu não bebia todo dia. Mas, quando bebia, não parava. Queria que comprassem mais e mais cerveja. Eu me lembrava do começo das confraternizações, depois não me lembrava de nada. Ficava com aquela questão moral: será que aprontei alguma coisa? Falei algo que ofendeu alguém? Hoje estou livre dessa angústia."
Ela conta que buscou o AA achando que aprenderia a identificar o momento de parar de beber para conseguir se lembrar de tudo. "Aqui aprendi onde eu poderia ter chegado, que, se não tem controle depois do primeiro gole, é alcoólatra."
Os resultados também apontam que 5,6% (3,5 milhões) dos brasileiros que consomem álcool já feriram alguém ou se feriram após ter bebido. A maior prevalência está na faixa etária entre 25 e 34 anos —6,9% já tiveram esse comportamento pelo menos uma vez na vida.
Cerca de 9,7 milhões de consumidores de álcool (15,3%) relatam que alguém já manifestou preocupação com essa conduta e 3,4% percebem diariamente ou quase todos os dias que não conseguem parar de beber.
Pouco mais de um quinto dos consumidores de álcool (21,7%, ou 13,8 milhões) sentiu culpa por ter bebido nos 12 meses antes da pesquisa.
Outros 8,9 milhões (14,1%) tiveram a percepção de que não conseguiriam realizar atividades devido ao álcool nos 12 meses antes da pesquisa. Quase 6 milhões (9,3%) disseram ter precisado beber ao acordar para "curar" a ressaca.
Pesquisa Datafolha divulgada nesta semana mostrou que metade da população brasileira entende que beber, mesmo que de vez em quando, faz mal à saúde. Para 38% desses, as bebidas estão associadas a acidentes de trânsito; para 36%, à dependência; e para 36%, à violência doméstica. Para 71% dos entrevistados, bebidas alcoólicas devem ter impostos mais altos.