No começo de 2013, o país parecia decidido a reduzir a pobreza e acabar com suas formas mais extremadas. Em lugar disso, vieram, entrelaçadas, a recessão de 2014, a crise política e a ascensão da dupla Bolsonaro-Guedes. Foi um retumbante retrocesso. Hoje, a renda per capita dos 20% mais pobres da população se assemelha à de 2012. Pior: caiu abaixo à do ano em que a economia entrou em parafuso. O mesmo ocorreu com a porcentagem dos extremamente pobres. Na luta contra a miséria, uma década foi pelo ralo.
Esses dados deprimentes estão esmiuçados no texto "A evolução da pobreza monetária no Brasil do século 21" de autoria do mais que competente sociólogo Pedro Ferreira de Souza, recém-publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
A linha da pobreza, como se sabe, é uma faixa estreita e escorregadia, onde milhões de pessoas estão sujeitas a se desequilibrar sem mais aquela. Basta uma doença; a perda do emprego ou do bico; o colapso do pequeno negócio informal por falta de fregueses também empobrecidos —e por aí vai.
Além de configurar uma tragédia humana, a existência de imenso contingente de brasileiros que vivem da mão para a boca tende a produzir efeitos políticos nefastos: estreita o raio de ação de forças comprometidas com reformas sociais sustentáveis e abre larga avenida para o populismo.
Nenhum exemplo é mais ilustrativo do que a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional 1/2022, conhecido como PEC Kamikaze. Obra-prima da lavra populista e peça da campanha de Bolsonaro à reeleição, é desde logo uma forma pervertida de política social. Tira recursos da saúde e da educação para aumentar —só por alguns meses— o valor do Auxílio-Brasil e garantir outros benefícios a grupos específicos, ao tempo em que manda às favas as normas fiscais.
Apesar disso, a PEC foi aprovada com o apoio maciço das forças de oposição —nelas incluídas as bancadas dos partidos de esquerda comprometidos com a justiça social. Seus líderes argumentaram não poder votar contra a concessão de benefícios aos mais necessitados. Pode parecer puro oportunismo. Não é. Indica, isso sim, a percepção de como é difícil encontrar apoio na massa de eleitores vulneráveis para a definição de prioridades e a opção por políticas sociais redistributivas que caibam no orçamento dos governos.
O sentimento de urgência é indissociável da carência de quase tudo e da insegurança econômica em que vivem os brasileiros pobres. Dá força à demagogia populista e desafia a imaginação dos que sabem que não há progresso social duradouro sem alicerces fiscais firmes.
*Por Maria Hermínia Tavares