
Nos últimos tempos, as discussões sobre saúde mental saltaram dos consultórios e do universo acadêmico para virarem meme no Instagram, autodiagnóstico no TikTok, e falarem a linguagem pop de filmes e séries. Nunca antes se debateu tanto transtornos mentais e remédios psiquiátricos, enquanto a Humanidade vive números crescentes de ansiedade e depressão.
Para a psiquiatra Juliana Belo Diniz, a presença da saúde mental na cultura pode ajudar a tirar o tabu de quem sofre, mas também cria outros fenômenos menos favoráveis, como a patologização e o excesso de diagnósticos e prescrições.
No recém-publicado "O que os psiquiatras não te contam" (Fósforo Editora), a doutora em Psiquiatria pela Universidade de São Paulo e especialista em pesquisa clínica pela Universidade Harvard conta como esse conhecimento sobre a ciência do cérebro ajudou a moldar a crença de que todo sofrimento merece um diagnóstico e pode ser solucionado com um comprimido — ou vários.
Na entrevista a seguir, ela fala sobre a função e os limites da psiquiatria, defende que a relação entre paciente e profissional é soberana e conta como a crise da adolescência virou um impasse nos consultórios.
Os problemas de saúde mental na adolescência têm sido muito falados. Como a psiquiatria pode (ou não) ajudar?
A gente não vai mandar todos os adolescentes para os psiquiatras, né? Temos outro problema muito maior, uma questão social que envolve rede social, sistema educacional, relações familiares. A gente não vai resolver isso medicando todos os adolescentes que sofrem.
Mas os adolescentes atuais enfrentam desafios diferentes de outras gerações?
Temos que lembrar que a adolescência sempre foi um período problemático. Existe um comportamento até às vezes delinquencial nessa fase que não se reflete numa vida adulta problemática. Adolescentes aprontam, são mais impulsivos. O que mudou foi que hoje não é mais um bando de pessoas de 15 anos aprontando sozinhas, elas são influenciadas por adultos que sabem muito bem o que tão fazendo. Antes você tinha sua família, seus vizinhos e sua escola no raio de influência. Agora há uma realidade alternativa que ninguém vê, ninguém sabe o que está acontecendo. Essa fase da vida sempre foi impossível, num dia está felicíssimo, no outro vive um sofrimento mortal. A diferença é que hoje, quando você está nesse dia pior, vê um vídeo que de uma comunidade onde pessoas se automutilam e fala: "Vou lidar assim com o meu sofrimento".
Quais são as questões da juventude que mais aparecem nos consultórios?
A coisa que mais chega para a gente é adolescente que ameaça algum ato de violência na rede social. Se a gente for internar todo adolescente que faz isso, teremos metade deles internada. Por outro lado, as escolas estão com esse pânico social porque esses casos de fato acontecem. Elas nos dizem que não dá para ignorar. Concordo, mas não podemos também dizer que essas pessoas são todas psicóticas.
O TDAH aumentou mesmo na adolescência ou há um exagero?
Estamos vendo no consultório prescrições de adolescentes com quantidades de remédios que eu nunca tinha visto nos últimos 20 anos. Muitas são diagnósticos de TDAH. Não sei até que ponto existe um exagero, porque eles estão com muita dificuldade de prestar atenção por viverem dentro do mundo tecnológico. Não têm paciência, acham tudo um saco. Isso não há remédio no mundo que vai resolver. É resultado de terem crescido num ambiente em que tudo tem que ser legal. Um lugar de hiperestímulo e de recusa ao tédio, ao silêncio, à calma.
A hiperconexão está prejudicando as relações no mundo real?
Estamos criando pessoas que não toleram relações humanas. Tudo é gatilho, tudo é intolerável, então eu me fecho dentro da minha casca, vivo no meu mundo controlado na internet e só faço o que eu gosto. Mas a vida não permite isso. Ela está o tempo todo pedindo para você fazer coisa que não quer, se relacionar com pessoas que talvez você não goste, fazer coisa chata.
Vivemos uma febre de discussões sobre transtornos mentais nas redes sociais. Isso ajuda ou atrapalha a compreensão do trabalho do psiquiatra?
Quando olho para as redes sociais, dá para a impressão de que a psiquiatria é o que vemos ali. Que já sabemos como o cérebro funciona, como intervir diretamente nele e que fazendo isso todos os problemas estarão resolvidos. Os nossos diagnósticos têm uma série de problemas e limitações, mas aparecem para o público geral como algo muito concreto, como um achado científico incontestável. Muitos colegas olham para isso e ficam incomodados, mas ninguém sabe direito como atingir esse público.
No livro, você diferencia a figura do psiquiatra, do psicólogo e do neurologista. Quais são essas diferenças?
A psiquiatria é uma especialidade da medicina, assim como a neurologia. Nós psiquiatras tentamos encontrar a origem biológica do que a gente trata, que são as manifestações emocionais, as doenças mentais, o sofrimento psíquico, as questões humanas. Não necessariamente encontramos uma falha, um erro. A neurologia encontra, ela sabe no cérebro onde está o problema, na via dos nervos, em algum lugar. A gente trabalha com a ausência desse problema. É claro que essa fronteira não é precisamente delimitada.
A psiquiatria nasceu para cobrir uma lacuna na medicina?
Ela surgiu a partir da necessidade. Havia pessoas sofrendo com manifestações de doenças mentais graves, para as quais não existia nenhum tratamento médico, e a psiquiatria surge para responder essa demanda. Ela nasceu antes do surgimento dos remédios psiquiátricos. Então, a hora que a psiquiatria se encontra com a psicoterapia é quando a ela sai dos grandes manicômios e vai para o consultório.
E como os remédios se encaixam no tratamento?
Inicialmente, a passagem da psiquiatria para os consultórios é muito em cima da psicoterapia. Aí, quando surgem os remédios, eles se tornam um instrumento adicional. Mas os psiquiatras aplicam essas drogas de uma forma diferente dos outros médicos. A questão técnica tem menos importância. Sabemos como os remédios funcionam, mas temos pouca ideia de como eles de fato fazem diferença. Isso depende muito da relação estabelecida ali. Um remédio prescrito em uma relação terapêutica é diferente de um remédio prescrito por uma inteligência artificial ou por um endocrinologista. A psiquiatria prescreve, mas ela é mais ampla que isso.
Você fala de como essa prática, embora tenha base científica, conta com um grau de subjetividade. Como ela se manifesta?
Nessa era de conhecimento dos transtornos, temos uma ideia de que tudo é quantificável, né? Você consegue chegar à verdade sobre aquele diagnóstico. E não é bem assim. A gente precisa do diagnóstico para algumas questões técnicas, por exemplo, para saber se uma depressão será chamada de unipolar ou bipolar. Dependendo do diagnóstico, esse peso técnico será diferente. Mas cada psiquiatra vai ter uma abordagem muito pessoal e subjetiva, algo que algumas pessoas acham extremamente assustador. A verdade é que essa tentativa de uniformizar e protocolar tudo acaba impedindo que a gente faça o que a gente precisa se feito, que é estabelecer essa relação de confiança (entre profissional e paciente).
Existe tentativa e erro na administração dos remédios psiquiátricos?
Sem dúvida. Inclusive as pessoas criam umas fantasias, como os testes chamados farmacogenéticos, que às vezes entram na moda. Muitos acham que isso substituiria a prescrição, que evitaria o erro. Mas não funciona. A informação que o teste traz, para a maioria das pessoas, não faz tanta diferença, a não ser que existam variantes genéticas muito fora da curva. Para a maior parte das pessoas vai continuar sendo tentativa e erro. Eu sempre falo que a clínica não perdoa. A gente tem toda uma bagagem do que esperamos dos remédios. Aí receitamos para a pessoa e ela descreve um efeito colateral nunca antes visto. Se ela falar para mim que o remédio é intolerável, eu não posso responder “insista”.
Qual é o peso de um diagnóstico na vida de alguém?
São duas perspectivas. Uma delas sempre existiu, é essa ideia de que o diagnóstico dá o roteiro da vida. Então, a partir do momento que um psiquiatra fala para alguém “Você tem um transtorno bipolar”, a chance daquela pessoa se comportar como uma bipolar efetivamente muda. Vai interpretar tudo naquela chave. Há muito tempo a gente tem a consciência de que a psiquiatria molda certos caminhos e que precisamos tomar cuidado com a maneira como a gente leva isso para o discurso cultural. Outro fenômeno são organizações da sociedade civil começarem com um discurso contra a medicina e contra os psiquiatras, alegando que é um absurdo determos o privilégio de dizer o que os outros têm. Aí, por alguma razão arbitrária, a pessoa acaba se autodiagnosticando, principalmente com autismo e déficit de atenção. E passa a reivindicar uma série de direitos por conta disso. Quando muitas vezes aquilo é uma confusão com outros diagnósticos ou uma patologização de aspectos da existência humana.
Por que as pessoas se autodiagnosticam?
A pessoa pensa “não é possível que todo mundo sinta isso. Devo ter alguma coisa errada”. É uma fantasia. Esse movimento começa na sociedade civil e uma parte da psiquiatria e até da neurologia abraçam a causa e passam a dizer que existe legitimidade científica ali. A coisa saiu do nosso controle. Daqui a pouco, todo mundo vai ser autista ou ter déficit de atenção. Mas não existe esse ser humano normal. Estou para conhecer alguém que seja normal.
Nesse sentido, receber um diagnóstico, mesmo que seja equivocado, alivia alguma angústia?
Sim. E isso é um problema, porque nos aliena da discussão dos problemas sociais. A sociedade não é acolhedora da diferença. A maior parte de nós, em um ambiente ou em outro, se sente deslocada. Todo mundo sofre essas tentativas de encaixe. A discussão talvez devesse ser como a sociedade poderia acolher melhor a diferença.
Ao mesmo tempo que vemos um excesso de diagnósticos existe um movimento de despatologização, de interromper essa tendência. Como você vê essa discussão?
Temos que tomar cuidado também, porque essa patologização acontece num nicho. As pessoas que têm acesso a tratamentos psiquiátricos conseguem fazer esse caminho, produzir todos os laudos que necessitam. Mas muita gente com condições até mais graves não têm o mesmo acesso. Então, apesar de existir um excesso de diagnósticos, temos uma distribuição muito desigual.
Como o autismo se enquadra nesse panorama?
Trata-se de um distúrbio extremamente grave, que merece todo o cuidado. Mas essa história de expandir o espectro autista para incluir um grande número de pessoas é algo que não se estende a doenças como o transtorno obsessivo-compulsivo e a esquizofrenia. São pessoas às vezes ainda mais comprometidas. Isso também é uma desigualdade, uma injustiça. Você tratar pessoas que se autodiagnosticam no espectro autista por uma dificuldade mínima de adaptação e dizer que elas têm mais direito do que uma pessoa com um desses transtornos ainda mais graves é muito injusto.
Estamos medicando demais o sofrimento humano?
Mais uma vez, é algo muito desigual. Num certo nicho que tem acesso, a gente está medicando demais mesmo. Mas há muita gente que poderia se beneficiar do remédio que ainda não recebe. Temos que saber, no entanto, que o remédio não vai ter um efeito rápido e que não temos certeza de que a medicação é a melhor forma de lidar com aquele problema. As pessoas se frustram. Você dá um remédio, aí não é suficiente, ela busca outro, você faz uma associação, quando vê a pessoa está tomando quatro, cinco remédios, tem dez diagnósticos e não se sente melhor.
Muito se fala hoje sobre a dopamina, que estaria envolvida em vícios como as redes sociais. Há quem pregue um “detox”. Qual é seu verdadeiro papel?
O que sabemos da dopamina vem muito dos modelos animais. Quando a gente bloqueia os neurônios que produzem a substância ou seus receptores, mudamos a relação do animal com a situação que pode trazer recompensa. A partir dessa constatação fizeram um salto para a experiência humana. Confundiram esse efeito relacionado à recompensa com a sensação de prazer. A dopamina não produz a sensação de prazer, ela apenas nos mobiliza. Não que não exista relação nenhuma entre o vício em substâncias com a dopamina. Mas ela é mais complexa. Ficamos com a impressão de que é só resolver o problema da dopamina para solucionar qualquer vício. Então, as plataformas que criam maneiras de a gente ficar mais tempo online e se viciar em vídeos curtos passam a não ser mais o problema, a dopamina que é. Tentamos mexer no cérebro quando existe uma questão social, política, de regulação.
Como a psiquiatria diferencia sofrimentos que têm origem individual daqueles que são determinados por contextos coletivos?
Uma coisa não anula a outra. A psiquiatria também trata das questões sociais, temos poder de denúncia. Mas somos muitas vezes convocados a resolver problemas que às vezes não são nossos. Quando, por exemplo, no Afeganistão, as meninas são proibidas de estudar e começa a haver um alto índice de suicídio, isso não é um problema psiquiátrico. Não adianta você colocar um monte de psiquiatra disponível para elas, existe uma questão humanitária.
Qual a sua opinião sobre as terapias com psicodélicos?
Os psicodélicos entraram novamente na pauta porque a gente esbarrou num muro, sem grandes inovações previstas para farmacologia. Aí ressuscitar essas substâncias caiu bem. Acho que, se algo existe, tem que ser explorado mesmo. Precisamos descobrir para que serve ou não, quando faz mal ou faz bem. A questão dos psicodélicos é que foi um campo que se abriu com muito hype. As pessoas que pesquisam querem muito que aquilo seja muito bom. Então, acho tem existe muito estudo desenhado de uma forma que favorece isso. Quando esse hype baixar e as coisas se acomodaram, ele vai virar um remédio para algumas ocasiões. Não acredito que essas drogas vão virar um produto farmacêutico extremamente eficiente para comprar na farmácia e tomar em casa. Elas vão continuar existindo dentro de contextos rituais ou terapêuticos específicos. Não acredito que sejam uma revolução.(O Globo)