David de Jong era um jovem jornalista em início de carreira quando, em 2011, seus editores na Bloomberg pediram que ele investigasse primeiramente as riquezas americanas escondidas e, depois, já que ele é holandês, as alemãs. Aceitou a contragosto, já que revolveria questões que ainda machucam sua família, e, “ingênuo”, em suas palavras, ele achou que não encontraria nada muito grave.
Mas uma coisa levava a outra e quando viu estava mergulhado na história de famílias alemãs que lucraram com o nazismo - e que hoje continuam entre as dinastias mais ricas e influentes do mundo, donas de marcas que, seja você rico ou pobre, estão presentes no seu cotidiano (explicitamente, no nome que homenageia seus fundadores, ou indiretamente, já que algumas dessas empresas viraram holdings).
As reportagens que escreveu foram o ponto de partida para o livro Bilionários Nazistas: A Tenebrosa História das Dinastias Mais Ricas da Alemanha, que a Objetiva mandou para as livrarias nesta quinta, 9. Trata-se de uma envolvente obra de não ficção narrativa, cujos personagens e feitos parecem saídos de um livro de ficção. Infelizmente, não são.
Confira trechos da entrevista concedida ao Estadão por Zoom, em que ele defende, antes de tudo, que essas empresas sejam transparentes, assumam o apoio a Hitler e façam esse acerto de contas com o passado. Algo que, ele diz, no Brasil também deveria ser feito com relação à ditadura militar.
Costuma-se culpar apenas o líder por trás de toda a destruição. Seu livro dá nome aos muitos responsáveis por patrocinar a loucura de Hitler - o que os torna, você coloca, também responsáveis pelo Holocausto. Por que empresários se aliaram a Hitler?
Escrevo sobre cinco famílias e as escolhi porque continuam relevantes nos negócios globais e estão entre as mais ricas e influentes no mundo todo. As duas primeiras são a dinastia Quandt - um de seus ramos controla a BMW, e a Flick, dona do maior conglomerado de indústrias de aço, carvão e armas da Alemanha nazista durante o Terceiro Reich. Friedrich Flick foi o único entre os personagens do livro condenado no Tribunal de Nuremberg. Depois foi liberado e em uma década estava de volta ao topo do controle da Daimler-Benz. A terceira família é a Von Fink, que cofundou a Allianz e Munich Re, duas das maiores seguradoras de hoje e de um banco privado chamado Von Fink. Os Flick e os Von Fink, hoje, apenas investem seu dinheiro, não têm uma empresa. A quarta família é Porsche, que controla os grupos Porsche e Volkswagen, que inclui, também, Audi, Lamborghini, Bentley. A última é a Oetker, controladora de conglomerados de panificação, hotéis de luxo, navegação, produtores de cerveja. Essas pessoas, em sua maioria, eram oportunistas - e não nazistas. Já era uma gente muito rica antes de Hitler. Mas estavam saindo da Grande Depressão e queriam proteger suas fortunas e seus negócios. Hitler prometeu que eles se beneficiariam do programa de rearmamento que estava iniciando. E entregou o que prometeu. Não foi uma decisão ideológica apoiar Hitler. Foi uma decisão comercial. Mas, claro, tudo virou um comportamento criminoso muito rapidamente, ou logo de cara.
Entre suas descobertas, o que mais o impressionou?
O nível de envolvimento dessas famílias e dos negócios alemães como um todo com o Terceiro Reich, com o Holocausto e com o regime nazista e como eles se beneficiaram da exploração massiva do trabalho forçado e escravo e da expropriação dos negócios que pertenciam aos judeus na Alemanha e nos territórios ocupados. Entrei nessa pesquisa acreditando que as coisas não seriam tão ruins, mas houve colaboração profunda. Em segundo lugar, a falta de remorso por parte dos patriarcas e de seus herdeiros, que ainda hoje não assumem essa responsabilidade.
Por que acha que essas empresas continuam tão saudáveis? E qual é a nossa responsabilidade nisso?
As raízes estão no milagre econômico da Alemanha Ocidental dos anos 1950. A indústria automobilística é a espinha dorsal da economia alemã. Empresas como a BMW, Daimler, Daimler Bands, Porsche, Audi e Volkswagen se tornaram fenômenos mundiais. Essa base foi lançada nos anos 1950. Mas foi, claro, a decisão dos americanos de não punir os negócios alemães que permitiu reconstruir a Alemanha Ocidental como um país viável, democrático, com uma economia forte, como um para-choque contra a União Soviética e a ocupada Alemanha Oriental. As pessoas não equiparam os crimes dessas empresas ou das famílias por trás delas com os produtos que elas fabricam. Elas são experientes em marketing, fazem bons produtos. Então, por que elas não seriam bem-sucedidas? Não me surpreende.
Há um movimento pela busca de um consumo consciente. Você espera que seu livro contribua para isso?
O objetivo do meu livro é apresentar os fatos aos consumidores para que eles mesmos decidam o que querem fazer com essa informação. Mas acredito que as pessoas devam saber que o dinheiro que gastam pode acabar ajudando a manter uma fundação global, prêmios para a imprensa, museus e sedes corporativas que levam o nome de um criminoso nazista sem que essas empresas sejam transparentes sobre o fato de que esses homens foram criminosos de guerra.
Você cita um historiador encarregado de analisar mudanças nos nomes das ruas que disse que qualquer pessoa que tivesse “lucrado com o sistema nazista não merece uma visão geral relativizadora do trabalho de sua vida”. Concorda?
Sim. O que ele propõe é um argumento em defesa da transparência, que Herbert Quandt está sendo celebrado por seus sucessos empresariais, mas que informações sobre o fato de ele ter construído campos para explorar milhares de homens e mulheres em fábricas de bateria em Berlim não estão ao alcance do público.
O que exatamente essas famílias deveriam fazer hoje?
O que peço é o mínimo: que sejam transparentes - especialmente nesta época de desinformação que estamos vivendo, porque isso mina democracias. Vimos isso nos Estados Unidos. Vimos isso no Brasil há seis semanas. Em momentos em que a desinformação é tão dominante, o mínimo que devemos fazer é ser transparentes quanto à história para evitar distorções que levem ao enfraquecimento de democracias.
As famílias se recusaram a falar com você. Acredita que pessoas, que empresas, possam mudar? Ou isso é parte da identidade delas?
É parte de sua identidade. Essa geração não criou nenhum de seus sucessos nos negócios. São herdeiros e estão sob a sombra do sucesso estabelecido por seus pais e avós. Rejeitar seus pais e avós significa rejeitar sua própria identidade.
Essa é uma história que começa na Alemanha, mas que se espalha pelo mundo com a expansão dessas empresas. Você menciona o Brasil em alguns breves momentos. Algo mais a comentar sobre o País e sua relação com essa história?
Pode ser um comentário por extensão: até que ponto o Brasil já fez seu acerto de contas com as famílias de empresários que lucraram com a ditadura militar? Meu amigo Alex Cuadros escreveu um livro muito bom sobre isso, Brazillionaires, que nunca foi publicado no Brasil.
O mundo assistiu a um crescimento da extrema direita. Como você relaciona o mundo de hoje com o que aconteceu na Alemanha dos anos 1930, quando não só empresários, mas a sociedade em geral, apoiaram um líder autoritário?
Vimos desde 2016 a ascensão do Brexit, de Trump, Bolsonaro e Orban. Orban, Erdogan e Putin já estavam lá. É uma sensação de privação de direitos. O que está na base de todos os problemas globalmente é a desigualdade econômica, e os políticos de direita, extrema direita, em sua maioria, estão se aproveitando do descontentamento que a desigualdade econômica traz. A Alemanha, em 1933, estava recém-saída da Grande Depressão, que foi a maior destruição de riqueza já vista na História. Agora as pessoas estão relativamente bem de vida, mas como a desigualdade se tornou tão grande, mesmo as pessoas que estão na classe média se sentem economicamente desprovidas de direitos. Políticos populistas estão se aproveitando do descontentamento.
Isso leva a outra questão: como a ideologia nazista se expressa na sociedade hoje?
Não acho que o movimento esteja necessariamente relacionado à ideologia nazista ou fascista. É mais pela forma autoritária com que homens como Trump, Bolsonaro ou Putin governam. É a ascensão do populismo que se transforma em autoritarismo e é fácil cair na demagogia. É fácil acreditar nisso porque torna o mundo mais fácil. É confortável acreditar nisso porque dá às pessoas algo em que se agarrar. Há bodes expiatórios, há um inimigo comum para o qual eles apontam. Vê-se isso em todo lugar.
Você termina dizendo que os fantasmas do Terceiro Reich ainda assombram. Como se livrar deles?
A luz do sol é o melhor desinfetante. Se querem que esse fantasma pare de assombrá-los, devem começar a ser transparentes sobre o passado.