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    Bispos renovam o Pacto das Catacumbas, assinado por dom Henrique Trindade em 1965

    Cultura

    1162 Jornal A Bigorna 22/10/2019 12:30:00

    Grupo de bispos, padres e leigos refez o ato e a promessa de opção preferencial pelos pobres, incentivados pelos temas apresentados na Sínodo sobre a Região Pan-Amazônica

     

    Gesiel Júnior

     

    Participantes do Sínodo da Amazônia, que se realiza em Roma, sob a presidência do Papa Francisco, reuniram-se para renovar no último domingo o chamado 'Pacto das Catacumbas', um documento assinado por mais de 40 bispos latino-americanos às vésperas da conclusão do Concílio Vaticano II, em 1965. O evento aconteceu na catacumba de Santa Domitila, na capital italiana. Dentre os 42 signatários esteve o primeiro arcebispo de Botucatu, dom frei Henrique Golland Trindade, OFM (1897-1974).

    Organizado hoje por dom Erwin Kräutler, bispo emérito da Prelazia do Xingu (PA), o grupo participou de uma missa na manhã de domingo, presidida pelo cardeal Cláudio Hummes, relator do sínodo. Foi outro momento histórico para a Igreja Católica, marcadamente para a Igreja da América Latina, que tem agora o seu primeiro representante no trono de Pedro, o argentino Jorge Mario Bergoglio, Papa Francisco.

    O texto, assinado por bispos, padres, religiosos e leigos, foi intitulado “Pacto das Catacumbas pela Casa Comum”, numa referência aos temas tratados pelo Sínodo para a região Pan-Amazônica.

    Fidelidade ao espírito de Jesus

    No dia 16 de novembro de 1965, há quase 54 anos, poucos dias antes do encerramento do Vaticano II, cerca de 40 padres conciliares celebraram uma missa nas Catacumbas de Domitila, em Roma, lugar onde os primeiros cristãos que morreram mártires eram sepultados. Na ocasião pediram fidelidade ao espírito de Jesus e no fim dessa celebração eucarística assinaram o "Pacto das Catacumbas".

    O documento é um desafio aos "irmãos no episcopado" a levar adiante uma "vida de pobreza", uma Igreja "serva e pobre", como sugerira o Papa João XXIII.

    Na ocasião do ato original, em 1965, entre os 42 signatários, além de dom Henrique Trindade, estiveram presentes outros quatro brasileiros: dom João Batista da Mota e Albuquerque (1909-1984), então arcebispo de Vitória; dom Francisco Austregésilo de Mesquita Filho (1924-2006), bispo de Afogados de Ingazeira (PE); dom José Alberto Lopes de Castro Pinto (1914-2007), bispo-auxiliar do Rio de Janeiro; e dom Antônio Batista Fragoso (1920-2006), bispo de Crateús (CE).

    Franciscano gaúcho, dom Henrique guiou os católicos da região durante 20 anos, entre 1948 e 1968, tendo vivido de maneira despojada até sua morte, em 1974, entre as crianças acolhidas na Vila Sagrada Família, em Botucatu.

    Na época, ao assinar o documento histórico, o arcebispo de Botucatu se comprometeu a viver em pobreza, a renunciar a todos os símbolos ou privilégios do poder e a pôr os pobres no centro do seu ministério pastoral. O texto teve uma forte influência sobre a Teologia da Libertação, que surgiria nos anos seguintes, além de ter motivado a convocação da segunda Conferência Geral do Episcopado Latino Americano (Celam), realizada em Medellín, na Colômbia, em 1968.

    Confira, a seguir, o texto firmado no último domingo, em Roma.

    Pacto das Catacumbas pela Casa Comum

     

                - Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana

    Nós, participantes do Sínodo Pan-amazônico, partilhamos a alegria de habitar em meio a numerosos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, migrantes, comunidades na periferia das cidades desse imenso território do Planeta. Com eles temos experimentado a força do Evangelho que atua nos pequenos. O encontro com esses povos nos interpela e nos convida a uma vida mais simples de partilha e gratuidade. Marcados pela escuta dos seus clamores e lágrimas, acolhemos de coração as palavras do Papa Francisco:

    Muitos irmãos e irmãs na Amazônia carregam cruzes pesadas e aguardam pela consolação libertadora do Evangelho, pela carícia de amor da Igreja.
    Por eles, com eles, caminhemos juntos”.

    Evocamos com gratidão aqueles bispos que, nas Catacumbas de Santa Domitila, ao término do Concílio Vaticano II, firmaram o Pacto por uma Igreja servidora e pobre. Recordamos com veneração todos os mártires membros das comunidades eclesiais de base, de pastorais e movimentos populares; lideranças indígenas, missionárias e missionários, leigas e leigos, padres e bispos, que derramaram seu sangue, por causa desta opção pelos pobres, por defender a vida e lutar pela salvaguarda da nossa Casa Comum. À gratidão por seu heroísmo unimos nossa decisão de continuar sua luta com firmeza e coragem. É um sentimento de urgência que se impõe ante as agressões que hoje devastam o território amazônico, ameaçado pela violência de um sistema econômico predatório e consumista.

    Diante da Trindade Santa, de nossas Igrejas particulares, das Igrejas da América Latina e do Caribe e daquelas que nos são solidárias na África, Ásia, Oceania, Europa e no norte do continente americano, aos pés dos apóstolos Pedro e Paulo e da multidão dos mártires de Roma, da América Latina e em especial da nossa Amazônia, em profunda comunhão com o sucessor de Pedro, invocamos o Espírito Santo, e nos comprometemos pessoal e comunitariamente com o que se segue:

                1. Assumir, diante da extrema ameaça do aquecimento global e da exaustão dos recursos naturais, o compromisso de defender em nossos territórios e com nossas atitudes a floresta amazônica em pé. Dela vêm as dádivas das águas para grande parte do território sul-americano, a contribuição para o ciclo do carbono e regulação do clima global, uma incalculável biodiversidade e rica sócio diversidade para a humanidade e a Terra inteira.

                2. Reconhecer que não somos donos da mãe terra, mas seus filhos e filhas, formados do pó da terra (Gn 2, 7-8), hóspedes e peregrinos (1 Pd 1, 17b e 1 Pd 2, 11), chamados a ser seus zelosos cuidadores e cuidadoras (Gn 1, 26). Para tanto, comprometemo-nos com uma ecologia integral, na qual tudo está interligado, o gênero humano e toda a criação porque a totalidade dos seres são filhas e filhos da terra e sobre eles paira o Espírito de Deus (Gn 1, 2)

                3. Acolher e renovar a cada dia a aliança de Deus com todo o criado: “De minha parte, vou estabelecer minha aliança convosco e com vossa descendência, com todos os seres vivos que estão convosco, aves, animais domésticos e selvagens, enfim, com todos os animais da terra que convosco saíram da arca (Gn 9, 9-10 e Gn 9, 12-17).

                4. Renovar em nossas igrejas a opção preferencial pelos pobres, em especial pelos povos originários, e junto com eles garantir o direito de serem protagonistas na sociedade e na Igreja. Ajudá-los a preservar suas terras, culturas, línguas, histórias, identidades e espiritualidades. Crescer na consciência de que estas devem ser respeitadas local e globalmente e, consequentemente favorecer, por todos os meios ao nosso alcance, que sejam acolhidas em pé de igualdade no concerto mundial dos demais povos e culturas.

                5. Abandonar, como decorrência, em nossas paróquias, dioceses e grupos toda espécie de mentalidade e postura colonialista, acolhendo e valorizando a diversidade cultural, étnica e linguística num diálogo respeitoso com todas as tradições espirituais.

                6. Denunciar todas as formas de violência e agressão à autonomia e direitos dos povos originários, à sua identidade, aos seus territórios e às suas formas de vida.

                7. Anunciar a novidade libertadora do evangelho de Jesus Cristo, na acolhida ao outro e ao diferente, como sucedeu com Pedro na casa de Cornélio: “Vós bem sabeis que a um judeu é proibido relacionar-se com um estrangeiro ou entrar em sua casa. Ora, Deus me mostrou que não se deve dizer que algum homem é profano ou impuro” (At 10, 28).

                8. Caminhar ecumenicamente com outras comunidades cristãs no anúncio inculturado e libertador do evangelho, e com as outras religiões e pessoas de boa vontade, na solidariedade com os povos originários, com os pobres e pequenos, na defesa dos seus direitos e na preservação da Casa Comum.

                9. Instaurar em nossas igrejas particulares um estilo de vida sinodal, onde representantes dos povos originários, missionários e missionárias, leigos e leigas, em razão do seu batismo, e em comunhão com seus pastores, tenham voz e voto nas assembleias diocesanas, nos conselhos pastorais e paroquiais, enfim em tudo que lhes compete no governo das comunidades.

                10. Empenhar-nos no urgente reconhecimento dos ministérios eclesiais já existentes nas comunidades, exercidos por agentes de pastoral, catequistas indígenas, ministras e ministros e da Palavra, valorizando em especial seu cuidado em relação aos mais vulneráveis e excluídos.

                11. Tornar efetiva nas comunidades a nós confiadas a passagem de uma pastoral de visita a uma pastoral de presença, assegurando que o direito à Mesa da Palavra e à Mesa de Eucaristia se torne efetivo em todas as comunidades.

                12. Reconhecer os serviços e a real diaconia do grande número de mulheres que hoje dirigem comunidades na Amazônia e procurar consolidá-los com um ministério adequado de mulheres dirigentes de comunidade.

                13. Buscar novos caminhos de ação pastoral nas cidades onde atuamos, com protagonismo de leigos e jovens, com atenção às suas periferias e aos migrantes, aos trabalhadores e aos desempregados, aos estudantes, educadores, pesquisadores e ao mundo da cultura e da comunicação.

                14. Assumir diante da avalanche do consumismo um estilo de vida alegremente sóbrio, simples e solidário com os que pouco ou nada tem; reduzir a produção de lixo e o uso de plásticos, favorecer a produção e comercialização de produtos agroecológicos, utilizar sempre que possível o transporte público.

                15. Colocar-nos ao lado dos que são perseguidos pelo profético serviço de denúncia e reparação de injustiças, de defesa da terra e dos direitos dos pequenos, de acolhida e apoio a migrantes e refugiados. Cultivar amizades verdadeiras com os pobres, visitar as pessoas mais simples e os enfermos, exercitando o ministério da escuta, da consolação e do apoio que trazem alento e renovam a esperança.

    Conscientes de nossas fragilidades, de nossa pobreza e pequenez diante de tão grandes e graves desafios, confiamo-nos à oração da Igreja. Que sobretudo nossas Comunidades Eclesiais nos socorram com sua intercessão, afeto no Senhor e, sempre que necessário, com a caridade da correção fraterna.

    Acolhemos de coração aberto o convite do Cardeal Hummes para nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo nestes dias do Sínodo e no retorno às nossas igrejas:

    Deixem-se envolver no manto da Mãe de Deus e Rainha da Amazônia. Não deixemos que nos vença a auto-referencialidade, mas sim a misericórdia diante do grito dos pobres e da terra. Será necessária muita oração, meditação e discernimento, além de uma prática concreta de comunhão eclesial e espírito sinodal. Este sínodo é como uma mesa que Deus preparou para os seus pobres e nos pede a nós que sejamos aqueles que servem à mesa”.

    Celebramos esta Eucaristia do Pacto como um ato de amor cósmico. “Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja de aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo”. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico “a criação propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador”. “Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira”.

     

                Catacumbas de Santa Domitila


                Roma, 20 de outubro de 2019

     

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